América Latina expõe fracasso ocidental ao resistir a sanções anti-Rússia, diz analista

Atualizado em 21 de fevereiro de 2023 às 13:22

Publicado originalmente no Sputnik Brasil

Presidenta do Conselho da Federação Russa, Valentina Matvienko, Lula e Janja. Foto: Reprodução

Por Lucas Rocha

Enquanto a Europa promove um extenso e quase suicida plano de sanções contra a Rússia arquitetado pelos Estados Unidos diante do conflito na Ucrânia, países da América Latina seguem resistentes a medidas de retaliação a Moscou. Se antes o Ocidente ditava regras sem questionamento, hoje parece ter perdido tal poder.

Para especialista ouvido pela Sputnik Brasil, a posição geral dos países latino-americanos, africanos e do chamado Sul Global diante do conflito demonstra um grande “fracasso ocidental”.

O sinal mais recente desse fenômeno se deu diante da insistência dos líderes dos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) sobre a questão de fornecimento de armamentos e munições ao regime de Kiev.

Os países latino-americanos prontamente responderam negativamente à demanda ocidental e seguem resistindo às pressões que têm sofrido. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, tem pregado a negociação da paz pela criação de um grupo de países que possa mediar o conflito. O Planalto manteve a posição neutra mesmo após encontros com o presidente dos EUA, Joe Biden, em Washington, e com o chanceler alemão, Olaf Scholz, em Brasília.

Nem mesmo a Colômbia, que é oficialmente “parceira global” da OTAN, aceitou enviar equipamentos militares para a Ucrânia.

A resistência às tentativas de imposição por parte das potências ocidentais não fica restrita à América Latina. Desde o início do conflito e dos primeiros pedidos dos EUA e de seus parceiros europeus para um grande boicote internacional à Rússia, países de diversas partes, sobretudo na África, têm se posicionado contra essa ideia.

No sábado (18), o ministro de Relações Exteriores de Uganda, Jeje Odongo, denunciou a pressão que o país tem sofrido de “ex-colonizadores” para se voltar contra a Rússia e disse que Kampala manterá as relações com Moscou.

“Fomos colonizados e perdoamos aqueles que nos colonizaram. Agora os colonizadores nos pedem para sermos inimigos da Rússia, que nunca nos colonizou. É justo? Não é assim para nós: seus inimigos são seus inimigos, nossos amigos são nossos amigos. Não deve haver interferência nesse assunto”, disse Odongo.

Essa posição firme têm gerado incômodo em Kiev. Em entrevista recente, o chanceler ucraniano, Dmitry Kuleba, reconheceu que as relações com a América Latina não estão tão próximas quanto eles desejariam e estão em reavaliação.

O ministro criticou a postura de não envolvimento dos países que não enviam armas “porque isso encoraja a guerra” e disse que, na realidade, “querem que a Ucrânia não lute”. Kuleba acrescentou que “se não tivermos armas, e a Rússia sim, a Rússia ganha, é muito simples”.

Mamadou Alpha Diallo, professor de relações internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), disse à Sputnik Brasil que a reação negativa dos países da América Latina e da África às pressões europeias demonstra um enfraquecimento do poder do Ocidente.

“Se a gente considera o Ocidente o centro do mundo, o que se percebe é que esse poder é dado a partir do momento que os outros são submetidos ao Ocidente. No momento em que os outros deixam de obedecer, esse poder se enfraquece. Você manda enquanto alguém obedece. O poder do Ocidente não é nada sem o resto do mundo, inclusive ele foi construído sobre isso.”

Diallo aponta que o processo de fortalecimento da periferia do sistema-mundo vem sendo construído há tempo e impacta a postura europeia. Segundo o analista, esse empoderamento do Sul Global torna o Ocidente mais agressivo. “Eles estão perdendo espaço, e isso aumenta a quantidade de crises e conflitos”, avalia.

“Hoje a Europa tem pouco a oferecer. E, ao contrário, a Europa precisa da África, da América Latina e do Oriente Médio. A periferia não vai seguir o Norte Global.”

Segundo o pesquisador, dois processos ajudam a explicar essa reação diante do conflito ucraniano: a pandemia de COVID-19 e o fracasso da chamada “guerra ao terror”.

“A crise na Ucrânia acontece quase com a pandemia de COVID-19, em que cada um parecia ter que se virar sozinho. Uma das coisas que a pandemia, então, mostrou é que não adianta depender do outro. Isso gerou um aumento da confiança da periferia em resolver seus problemas. E, com isso, os países percebem que podem desobedecer às ordens dos senhores ocidentais.”

A ‘guerra ao terror’ virou uma guerra global do Ocidente atacando o mundo inteiro, e isso foi muito malvisto, principalmente porque eles não conseguiram vencer. O mais emblemático é a saída dos EUA do Afeganistão. Essas imagens simbolizam o fracasso. Muitos morreram, economias morreram, países foram desestabilizados, como a Síria, supostamente ’em nome dos direitos, da democracia’, algo que nunca chega”, destaca Diallo.

O professor pondera que depois do genocídio ruandês da década de 1990 e de conflitos que a Organização das Nações Unidas (ONU) “poderia evitar, mas colocou lenha na fogueira”, “os países africanos perceberam que precisam tomar conta dos próprios problemas. Os problemas africanos não dependem mais diretamente das soluções ocidentais”.

Diallo acredita que o conflito na Ucrânia abre oportunidades para os países do Sul se aproximarem enquanto a Europa fomenta o combate.

“O nosso grande problema é a falta de unidade dos países do Sul. Se tem uma América Latina integrada, uma África integrada, se tem uma potência. A guerra é uma oportunidade para que as relações Sul–Sul sejam fortalecidas. A África e a América Latina integradas e juntas consistiriam em um poder global que não fica atrás da China”, afirmou.

Alternativas como o banco do BRICS, segundo o especialista, são muito importantes para uma redução da dependência do Ocidente.

“Se o BRICS se consolida como uma alternativa ao Fundo Monetário Internacional [FMI] e ao Banco Mundial, qualquer um dos países da América Latina e da África não vai precisar pegar dinheiro do Ocidente. […] Se tirar a presença europeia, esses países conseguem dinamizar a economia, relações sociais e políticas”, finaliza.

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