Bolsonaro enfrentou 184 acusações apresentadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) por partidos políticos, parlamentares, organizações da sociedade civil e cidadãos em geral. Uma análise realizada pelo jornal O Globo das ações revelou que 95% das manifestações da Procuradoria-Geral da República (PGR) no período estiveram alinhadas aos interesses do bolsonarismo, defendendo ou chancelando arquivamentos, ou apoiando medidas processuais favoráveis ao clã.
Em 134 ocasiões (72%), a PGR solicitou a extinção do processo, enquanto em outras 32 (17%) ela acatou decisões anteriores do STF neste sentido sem recorrer. Além disso, houve dez ocasiões em que a PGR emitiu pareceres favoráveis a Bolsonaro ou seus filhos, incluindo tentativas de retirar as ações do ministro Alexandre de Moraes, um inimigo declarado do ex-presidente. Em cerca de 10% dos casos (18 ações), a PGR sequer manifestou-se
Cerca de um terço das ações contra Bolsonaro envolve temas relacionados à Covid-19. Em várias ocasiões, ao solicitar o arquivamento, a PGR repetiu os argumentos do ex-presidente em relação à crise. Em outubro de 2020, quando as orientações científicas sobre o distanciamento social já eram conhecidas e amplamente aceitas, Aras escreveu: “Autoridades em matéria sanitária divergem sobre várias questões, tais como eficácia do isolamento social e imunidade coletiva”.
Até o final de seu mandato, Bolsonaro foi alvo de apenas um inquérito aberto por iniciativa da PGR, que investiga uma suposta interferência na Polícia Federal denunciada por Sergio Moro ao deixar o cargo de ministro da Justiça. Lindôra Araújo, vice-procuradora-geral da República e vista como uma das pessoas mais próximas ao ex-presidente no órgão, solicitou o arquivamento do caso em setembro, a menos de duas semanas do primeiro turno das eleições. Outros quatro inquéritos foram iniciados no próprio STF ou em decorrência da CPI da Covid.
A única outra manifestação da PGR contrária à família Bolsonaro se refere a uma petição que nem chegou a se tornar inquérito, relacionada a declarações do ex-presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco. Embora tenha inicialmente solicitado a audição de Castello Branco, Lindôra recomendou o arquivamento da ação após ela mesma colher o depoimento.
Humberto Jacques de Medeiros, antecessor de Lindôra no cargo, também minimizou os arroubos de Bolsonaro. Após os eventos do Sete de Setembro de 2021, quando o ex-presidente aumentou o tom dos ataques, chamou ministros do STF de “canalhas” e ameaçou não cumprir determinações judiciais, o então vice-procurador argumentou que interpretar do discurso uma sugestão de “abolição violenta do estado democrático de direito” – uma das categorizações em que os golpistas de 8 de janeiro vêm sendo enquadrados – seria algo “vago e impreciso”.
Inflexão pós-Lula
Somente após deixar o cargo executivo é que Bolsonaro enfrentou ações mais contundentes por parte da PGR. Em 13 de janeiro, cinco dias após os ataques em Brasília, o subprocurador Carlos Frederico Santos, nomeado por Aras para acompanhar o caso, pediu a inclusão do ex-presidente na lista de investigados como “instigador e autor intelectual dos atos antidemocráticos”.
O pedido foi aceito por Moraes. Santos anexou ao inquérito em andamento no STF uma petição assinada por 80 membros do Ministério Público Federal (MPF) que enfatiza que Bolsonaro “há anos vem manifestando desconfiança em relação à confiabilidade” do sistema eleitoral e “se empenhou em disseminar desinformação” sobre o Poder Judiciário, comportamentos que caracterizariam “uma forma grave de incitação, dirigida a todos os seus apoiadores”.
A posição da PGR em relação à postura de Bolsonaro foi drasticamente diferente seis meses antes. Em 6 de junho, ao opinar pelo arquivamento de uma notícia-crime que listava ataques infundados do ex-presidente à confiabilidade das urnas, Lindôra alegou que as declarações eram apenas “meras críticas ao sistema eletrônico” e tinham a intenção de “aperfeiçoá-lo”, estando “amparadas pelo princípio da liberdade de expressão” – ecoando, mais uma vez, uma retórica bolsonarista frequente. “Um simples discurso, meses antes do período de preparação das urnas, não tem potencial algum para impedir ou perturbar a eleição”, complementou a vice-procuradora.
“Democracia, eu te amo”
Na sessão de reabertura do Poder Judiciário, em 1º de fevereiro, Augusto Aras, de olho em uma improvável recondução em setembro, ao “lembrar da história do Brasil”, declarou: “Democracia, eu te amo, eu te amo e eu te amo”.
“Nós, cidadãos do Estado Democrático de Direito precisamos dizer todos os dias: democracia, eu te amo, eu te amo, eu te amo”, disse o procurador-geral. Além disso, o PGR repetiu a frase, mas nessa segunda vez, falando “em nome do Ministério Público brasileiro”.
Relembre o episódio:
Ao ser contatada, a PGR afirmou que solicitou a abertura de “pelo menos oito inquéritos” para investigar eventos envolvendo Bolsonaro ou “membros do alto escalão do governo”. Essa contagem se refere apenas às ações em que o próprio ex-presidente ou seus filhos são alvos. Além disso, o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro é objeto de investigação a pedido do órgão, que se opôs várias vezes à inclusão de Bolsonaro no inquérito.