O educador Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP, é um dos autores de um relatório com estratégias para prevenir ataques contra escolas. Esse documento, entregue ao gabinete de transição do governo Lula, também investiga as raízes da extrema direita nesses eventos.
Na manhã de quarta-feira (5), uma creche na cidade de Blumenau, Santa Catarina, foi alvo de um ataque e quatro crianças foram mortas, entre elas três meninos e uma menina com idades de 5 a 7 anos.
O ataque aconteceu na creche particular Cantinho Bom Pastor, que fica na rua dos Caçadores, no bairro Velha.
Após a chacina, Cara anunciou que o Ministério da Educação articula a formulação de um decreto Interministerial para estabelecer um grupo de trabalho que elabore uma política nacional contra à violência nas escolas.
Ele concedeu uma entrevista ao DCMTV sobre esses assuntos.
Alguns highlights:
Ataque endêmico
Estou arrasado com o atentado contra a escola em Blumenau. A gente já sabia o que ia acontecer e já vinha alertando, inclusive aqui no DCM. Não se tratava de se iria acontecer um novo ataque, mas quando. Ninguém tem a dimensão, e que bom que é assim, o que é uma mãe ou um pai perder um filho quando ele deixou seu filho na creche para ser bem cuidado, evidentemente.
As crianças eram bem cuidadas até pelas próprias ações que as cuidadoras tiveram, de proteção a elas. Parece muito com o caso de Saudade [cidade de Santa Catarina que também teve uma chacina].
Eu estava em uma atividade com o coronel José Vicente no UOL e ele dizia que os casos não tem conexão. É um absurdo achar que não tem conexão, quando exatamente o mesmo tipo de violência se repete. Importante parabenizar as forças de segurança de Santa Catarina.
Embora o delegado que está investigando esteja dando informações confusas, as forças de segurança têm mostrado um esforço muito grande de mostrar que é um problema endêmico. No Brasil e nesse caso de ataques às escolas.
O decreto do governo Lula e a pesquisa do grupo
Agora há pouco no Twitter eu postei que conversei com uma equipe do Ministério da Educação. Falei com a secretária Zara Figueiredo Tripode, da Secadi (Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão) do ministério, e ela me informou que vai ser elaborado um decreto interministerial para combater a violência nas escolas.
E que isso é uma consequência do relatório que elaboramos na transição de governo, de combate nesses espaços. E eu não tenho como fugir dessa questão. Esse é um problema endêmico no Brasil.
Nós, o grupo envolvido, monitoramos que mais tentativas de ataques a escolas ocorram. Estamos às vésperas do aniversário do triste caso de Realengo. Até 20 de abril devem ocorrer mais casos. E também por conta do aniversário [do massacre] de Columbine nos EUA. É um momento muito difícil.
Peço desculpas a vocês pela tristeza. Não tem como fugir desse assunto.
O que nos diferencia dos EUA
Para quem está na luta pela Educação, viver essa dor, essa chaga, é difícil. Me perguntaram outro dia se os professores estão de fato com medo. O que vocês acham?
É claro que eles estão com medo. Os pais estão com medo. As crianças estão com medo. E isso é fruto de uma sociedade que se assemelha muito ao militarismo antes da Segunda Guerra Mundial. O ódio é disseminado na sociedade brasileira.
Ontem eu dei entrevista ao correspondente do Washington Post no Brasil. Ele tenta construir um paralelo entre os casos que ocorreram nos Estados Unidos e aqui. O correspondente disse que pelo menos não está ocorrendo a mesma letalidade porque no Brasil estão sendo usadas armas brancas.
Isso comprova a necessidade do controle de armas. Existe um fator que precisa ser complementar ao controle de armas: Tratar da sociedade brasileira. A sociedade brasileira está doente.
Os políticos sabem o que precisa ser feito
Acredito que os ataques contra as escolas têm uma solução. Eu acredito na política e creio que sempre é possível reverter qualquer caso e quadro de injustiça. No relatório que fizemos para o governo, a gente indica caminhos.
Por incrível que pareça, estive duas vezes na BandNews, tanto na TV quanto no rádio, e acompanhei uma entrevista do José Luiz Datena com o prefeito de Blumenau. E o primeiro passo foi descrito por eles ali. Hoje os políticos têm noção e sabem o que precisa ser feito.
O que me angustia é a falta de ação. Porque pode ser que daqui até dia 20 deste mês ocorram novos casos.
Pesquisadores americanos entraram em contato comigo após o Washington Post. Não sei se foi coincidência ou não, mas propuseram: ‘O que nós podemos fazer para ajudar vocês? Podemos ajudar a investigar a internet no Brasil”.
A responsabilidade das big techs nos ataques às escolas
E vou dizer uma coisa a vocês. Antigamente as propagandas para esses ataques aconteciam na deep web. Hoje em dia elas estão no Reddit, nas redes. As plataformas precisam ser responsabilizadas por esses casos, senão eles vão proliferar.
O primeiro passo é esse. O segundo passo penso ser necessário, além do monitoramento, o Brasil ser conscientizado do quanto isso é inaceitável e repulsivo. A informação que eu tenho do sistema de proteção de direitos sobre o rapaz que cometeu o homicídio no dia 27 contra a professora é que ele está absolutamente assustado com a Fundação Casa.
Se isso não for divulgado, que essas consequências são nefastas, que esses crimes são inaceitáveis e nefastos, nada vai acontecer. E me desculpem meus amigos que falam que não se pode falar que um menor cometeu homicídio, mas é sim. Está no ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]. É sim. É uma medida socioeducativa contra ele, mas é uma medida por um crime de homicídio sim.
Sou totalmente contrário à redução da maioridade penal, mas se a gente não disser que esse crime é absurdo, a gente vai viver num país que vai proliferar esse tipo de crime.
Próximos passos
Estamos em situação de endemia desses crimes. Vou falar para vocês o que a gente monitora e a gente não faz muito alarde. Ele é discreto e passado para as forças de segurança. As pesquisadores que estão comigo já apontam que outros casos foram tentados na mesma semana do ataque.
O nosso grupo de WhatsApp não passou um dia sem o registro de uma tentativa de ataque. O ataque não é necessariamente com vítimas fatais. Nós já tivemos 18 ataques com vítimas fatais no Brasil, considerando o que aconteceu em Blumenau.
Mas o grupo é capaz de detectar ataques que não foram bem-sucedidos. São ameaças. Quando um jovem ameaça uma escola, ele já está fazendo um ataque.
Nosso próximo passo é passar a formar as pessoas para perceberem o risco de ataque. Saber o comportamento desviante de um adolescente ou de um jovem, como começa a fazer apologia à violência. Isso já é um sinal vermelho.
A responsabilidade dos pais e da sociedade
Quero dizer uma coisa a vocês aqui, como pai. Se o seu filho começar a fazer uma apologia de ataque, você também é responsável por salvaguardar a vida do seu filho quanto de outras crianças ou adolescentes. E também da comunidade escolar. Não fique quieto. Acione as forças de segurança. Se você tem essa informação, você é corresponsável pela paz na sociedade brasileira.
Como a esmagadora maioria das pessoas acham que esses casos são distantes, elas acham que o problema é com o outro. Não, o problema é de todos. Você não sabe como será o dia de amanhã. Se você está andando na rua e acontece um caso como esse.
E se irá acontecer com alguém da sua família. Ou pior. Se acontecerá com seu filho, sua filha, sua mãe, que às vezes é professora.
E eu já não aceito esse argumento de que as pessoas não têm que ter responsabilidade. Não estou falando somente de responsabilidade legal. Falo em responsabilidade cidadã. Não dá para se calar diante desses casos. Não dá.
Não dá para passar pano. Não dá para fazer vistas grossas. É absolutamente inaceitável.
Isso me revolta mais do que a reforma do Ensino Médio. Não tem nada que me incomode e que me mobilize mais. Quando isso acontece, eu fico, de fato, dias sem dormir.
Hoje eu tive uma baita de uma crise de choro. Pelo fato de eu estar no meio do ensino, ninguém sabe o que é professores e professoras recebendo mensagens desesperados. Eu não consigo imaginar a dor dessas mães e desses pais. É algo inenarrável.
A gente tem consciência de que precisa atacar esse problema com todas as forças possíveis, porque aconteceu aquilo que eu temia, no último ataque à escola, o poder público depois virou as costas para o problema.
Veja a entrevista completa abaixo.