Nelson Rodrigues faria 100 anos hoje. Republico, por isso, um artigo que escrevi sobre uma faceta pouco valorizada desse gênio: a de polemista. Para os que gostam de bastidores, o texto abaixo me valeu um ataque pessoal de Reinaldo Azevedo — um polemista que é, essencialmente, o oposto de Nelson Rodrigues.
Nelson Rodrigues foi um polemista absolutamente único entre os brasileiros. Suas bordoadas, quase sempre nas mesmas pessoas e pelos mesmos motivos, eram, paradoxalmente, delicadas como broncas de mãe amorosa – mas convicta e dura. Isso conta muito sobre ele. Nelson Rodrigues, nos combates que travou no campo das palavras, jamais pareceu interessado em destruir seus alvos e nem sequer em batê-los nos argumentos – mas sim em fazer os leitores pensarem, de preferência com um sorriso no rosto. Nelson Rodrigues, e este é um traço seu pouco valorizado, foi um dos melhores humoristas do país.
O humor estava presente em todas as polêmicas que travou – e também nas provocações que fez. Como toda a elite intelectual do Rio de Janeiro de seu tempo, tinha pelos paulistas uma mistura de desprezo, despeito, raiva e admiração. Traduziu tudo isso numa de suas numerosas frases memoráveis. “O pior tipo de solidão é a companhia de um paulista”, escreveu. Só um paulista muito tacanho poderia se sentir agredido por Nelson Rodrigues. Como sempre, a vergastada estava envolta num humor tão fino que subtraía quase toda a contundência – sem minar a essência da mensagem.
Essa grande tirada sobre os paulistas ele, como de hábito, repetiria muitas vezes, quase que obsessivamente. Nelson Rodrigues produziu um número extraordinário de frases memoráveis nas polêmicas que travou e nas provocações que fez, e para ampliar sua força usava a estratégia da repetição. Se ele fosse apenas um autor de frases, como o francês La Rochefoucauld, já teria conquistado um lugar destacado nas letras brasileiras. Suas máximas abarcaram virtualmente todos os campos, da política à religião, do futebol à psicologia – isso para não falar do amor. “É preciso trair para não ser traído”, escreveu ele num de seus grandes momentos de reflexão amorosa. Como de costume, você encontra essa frase em vários textos de Nelson Rodrigues.
Não era um polemista que se movimentava conforme as circunstâncias. Isso o distinguiu, por exemplo, de Paulo Francis. Francis foi de esquerda quando era chique ser de esquerda, nos anos 60 e 70. Na década de 80, em que o conservadorismo galvanizou boa parte do planeta na figura da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, Francis virou um polemista de direita. O glamour tinha se deslocado da esquerda para a direita. (Hoje, em que o receituário thatcherista é apontado por muitos como uma das razões da presente crise econômica mundial e por isso perdeu grande parte do brilho, Paulo Francis provavelmente retornaria à esquerda.)
Nelson Rodrigues não tinha problema nenhum em ser chamado de “reacionário” numa época em que isso era um dos maiores insultos que um intelectual poderia receber. Era um homem convicto não das virtudes do capitalismo, mas dos defeitos para ele insolúveis do socialismo. Os símbolos da esquerda de seu tempo foram uma formidável inspiração para Nelson Rodrigues. Do cardeal Dom Helder Câmara, um expoente da Teologia da Libertação – corrente esquerdista da igreja que pregava o ativismo em prol dos pobres –, ele dizia, por exemplo, que “só olhava para o céu para ver se ia chover”. O fascínio erótico que Guevara despertava nas mulheres da alta sociedade carioca – a “esquerda festiva” — também foi objeto de análises esprituosas, ferinas e divertidas.
A elegância bem-humorada com que ele esgrimia contrasta intensamente com as armas de outro célebre polemista brasileiro, Carlos Lacerda. Lacerda, que na juventude foi comunista e depois na idade adulta viraria anticomunista, tinha uma agressividade destrutiva que você jamais encontra em Nelson Rodrigues. Em seu melhor e ao mesmo tempo pior momento como polemista, Lacerda comandou um ataque sangrento ao presidente Getúlio Vargas, cuja administração era segundo ele um “mar de lama”. O suicídio de Getúlio, em 1954, é a demonstração suprema da força devastadora do “mar de lama” criado por Lacerda. (Posteriormente, em 1964, Lacerda apoiaria o golpe militar na esperança de se tornar logo depois presidente. Quando os militares decidiram permanecer no poder, ele se frustrou e foi para a oposição.) Compare isso com a resposta clássica de Nelson Rodrigues aos jovens rebeldes que nos anos 1960 o acusavam de ser mentalmente e ideologicamente senil. “Jovens: envelheçam.” Mais uma vez, o tom firme mas doce de uma mãe que deseja o melhor para seus filhos.
Ao contrário de tantos polemistas, Nelson Rodrigues não fez barulho simplesmente sendo do contra, mesmo sabendo da fraqueza do chamado pensamento convencional. Ele expressou isso numa de suas frases mais citadas: “Toda unanimidade é burra.” Se é possível traçar uma linha – ainda que torta — de Paulo Francis a Diogo Mainardi entre os polemistas, Nelson Rodrigues, lamentavelmente, não deixou sucessores. Arnaldo Jabor, que filmou algumas das histórias de Nelson Rodrigues e é um de seus mais conspícuos discípulos, bem que tentou, mas acabou ficando a uma distância considerável do mestre. Principalmente naquilo que foi talvez a marca maior de Nelson Rodrigues como polemista: o humor fino, suave que leva o leitor a refletir com uma risada e não a imprecar, seja contra ou a favor, com uma carranca.