Por Cheng Yawen
Quando se veem diante da ideia segundo a qual a China pode ser uma parceira decisiva para os países do Sul, certos pensadores à esquerda reagem negativamente. Apoiam-se em fatos reais. Lembram que o perfil do comércio chinês com o Brasil, por exemplo, é muito semelhante ao dos países centrais. Exportamos minérios e commodities agrícolas; importamos produtos industrializados e tecnologia. O mesmo se dá, acrescentam, com a maioria dos países da África e América Latina.
Embora verdadeiro, o argumento apoia-se numa visão estática sobre as políticas chinesas — como se elas não tivessem variado ao longo do tempo e não pudessem ser influenciadas por seus parceiros. É o que sugere o ensaio de Chen Yawen, pesquisador da geopolítica e do desenvolvimento na Universidade de Estudos Internacionais de Xangai. Outras Palavras tem a satisfação de oferecê-lo a seus leitores, em mais uma edição da coluna Diagonais Chinesas, que busca apresentar o pensamento de pensadores contemporâneos daquele país sobre grandes temas internacionais.
Yawen descreve, no artigo, as transformações na estratégia exterior chinesa. Ele a vê marcada por duas balizas. A concepção de que o “Império do Meio” só poderia encontrar seu espaço em aliança com os países do Sul teria se mantido, nos quase 75 anos após a chegada do Partido Comunista Chinês ao poder. Mas a aplicação prática desta ideia sofreu alterações relevantes, porque foi influenciada pelas políticas adotadas pela China para alcançar seu próprio desenvolvimento.
Nos primeiros anos pós-1949, predominaram os Cinco Princípios para a Coexistência Pacífica. Em 1974, eles foram aprofundados na singular Teoria dos Três Mundos, construída por Mao Tsetung e na qual a China via-se profundamente ligada ao países “em desenvolvimento”. Mas no final dos anos 1970, reconhece Yawen, ocorreu uma mudança sensível. Ela coincidiu com a percepção, pela China, de que não poderia bastar-se economicamente a si mesma, e precisava abrir-se temporariamente às potências ocidentais, para industrializar-se e se desenvolver tecnologicamente. Nesse período de abertura, Pequim priorizou o aspecto comercial de suas relações com o Sul. Necessitando de combustíveis e alimentos, foi buscá-los onde estavam disponíveis.
As políticas chinesas estão mudando de novo, explica Yawen. O giro começa com o fortalecimento econômico progressivo do país; amplia-se com uma diplomacia muito mais ativa no cenário internacional, já no mandato de Xi Jinping. Tende a tornar-se muito mais nítida depois da guerra na Ucrânia, pois Pequim deu-se conta de que pode sofrer, por parte de Washington, as mesmas sanções impostas a Moscou.
Desacoplamento, sustenta Yawen, é o conceito que define a nova postura da China diante dos EUA e do Ocidente. As consequências geopolíticas são vastas e profundas, agora que o país é a maior economia do planeta, sob o critério de produção real de bens e serviços. Surge, aos poucos, uma “Teoria dos Três Anéis”, clara referência aos “Três Mundos”. A China está empenhada, em primeiro lugar, em aproximar-se dos países que compõem seu espaço próximo: Ásia do Leste e Central e Oriente Médio. Quer também ampliar a cooperação e a parceria com América Latina e África, o “segundo anel”. Embora não rejeite relações com os países ricos, enxerga-os apenas num “terceiro anel”.
A nova atitude terá múltiplos desdobramentos, sugere o texto. A Nova Rota da Seda, com centenas de bilhões de dólares em investimentos em projetos de infraestrutura, nos países que a integram. Os preparativos para ações mais incisivas do Banco dos Brics e do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BAAI). Em especial, a luta para criar uma nova ordem monetária e financeira internacional. Em torno destas disputas, conclui Yawen, pode surgir uma nova polarização global. A China estará, segundo ele, aberta a relações muito mais estratégicas – e mutuamente benéficas – que as simples trocas comerciais. Mas as novas parcerias precisam ser construídas, o que exige esforço. É muito fácil vender soja ou carne aos chineses. Bem mais trabalhoso é criar, por exemplo, as bases de uma colaboração entre órgãos públicos, bancos estatais e empresas privadas, visando a desenvolver, no Brasil, o Complexo Econômico e Industria da Saúde.
O texto de Yaven intitula-se, originalmente, “Construindo os novos ‘Três Anéis’: a reconfiguração das relações exteriores da China diante do desacoplamento”. Foi publicado pela primeira vez na revista chinesa Wenhua Dongheng, referência em teoria política em seu país. Uma edição trimestral da revista, construída a partir de curadoria, edição e tradução do Coletivo DongSheng e do Instituto Tricontinental, circula também em português. Somos gratos a estes parceiros, por ampliarem nossas chances de diálogo com o pensamento chinês. (Antonio Martins)
A “operação militar especial” da Rússia contra a Ucrânia e o impasse instalado entre o Ocidente e a Rússia são acontecimentos históricos que indicam o fim iminente da onda de globalização iniciada nos anos 1980. Os absurdos esforços dos Estados Unidos para intimidar seus aliados a impor sanções assassinas contra a Rússia e para constranger outros países a tomar partido neste conflito conduziram o mundo a uma situação que lembra as lutas globais mortíferas do século XX. Tais acontecimentos colocam um grande desafio para a China. O fim dessa onda de globalização significa que o país já não terá o mesmo ambiente externo para o desenvolvimento, usufruído nos últimos quarenta anos, e que os Estados Unidos devem intensificar a ofensiva para restabelecer seu domínio sobre o sistema internacional e se desacoplar da China e da Rússia. O mundo passou por uma mudança de paradigma1. Diante de uma possível desintegração forçada e completa dos Estados Unidos e dos países ocidentais, a China deve ter a iniciativa de ajustar sua orientação estratégica de relações exteriores, e priorizar as alianças com países com os quais possa desenvolver uma nova ordem internacional que a proteja contra as repercussões desse desacoplamento.
A regra tácita da ordem internacional: a estrutura de poder centro-periferia
Durante três décadas desde o colapso da União Soviética, as relações entre a Rússia e o Ocidente foram hesitantes. Inicialmente, a Rússia buscou construir laços amistosos com os Estados Unidos e os países ocidentais, depois se afastou gradualmente destes e, agora, entrou em uma confrontação feroz. A evolução dessa relação reflete os limites políticos da globalização. Diferente das noções românticas sobre a globalização que cresceram na sequência do fim da Guerra Fria, na realidade esse período testemunhou o estabelecimento da hegemonia estadunidense e o desmembramento da União Soviética e do campo socialista. Esse processo de globalização e a busca dos Estados Unidos por supremacia global são dois lados da mesma moeda, são condições um do outro, e se promovem mutuamente. Esse sistema não pode perdurar indefinidamente, devido a sua incapacidade de promover a igualdade internacional, com países desenvolvidos e em desenvolvimento presos em uma relação de dominantes e dominados. Por um lado, a globalização é abandonada, revertida e reformatada quando se volta contra seus promotores, ameaçando sua superioridade. Por outro, os países vão continuar resistindo à busca implacável dos Estados poderosos por dominação2. A operação militar especial da Rússia contra a Ucrânia é resultado da natureza de dominação dessa fase de globalização, e levou o sistema dominado pelos Estados Unidos a um impasse.
A expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o Leste, que já dura décadas, foi a principal razão do ataque preventivo da Rússia. Essa expansão militar não foi apenas uma questão de segurança, mas também econômica, parte dos esforços dos Estados Unidos para marginalizar a Rússia. Os esforços russos para aproveitar a globalização, avançar em seu desenvolvimento nacional e se tornar um país central na ordem mundial contrariam a lógica da globalização liderada pelos EUA. O capital internacional, particularmente o capital financeiro, se concentrou predominantemente em energia, grãos e minerais russos, setores que pode explorar para obter lucros extravagantes. No entanto, durante o mandato de Vladimir Putin como presidente da Rússia, o Estado fortaleceu seu peso em setores estratégicos para a segurança nacional e as condições de vida da população, e buscou construir uma união econômica eurasiana para criar espaço para seu próprio crescimento econômico. Isso irritou o capital estrangeiro. A expansão da OTAN ao leste expressa o controle do capital sobre a política com o objetivo de expandir seus mercados. Se a Rússia não puder responder efetivamente aos esforços que visam restringir seu espaço de desenvolvimento e ao aumento de sua marginalização, ela será ainda mais profundamente obrigada a ser mera produtora de bens primários e perderá o acesso à política das grandes potências. Isso aumentaria as probabilidades de crises políticas internas, que as elites russas pretendem evitar.
A estrutura de poder da ordem mundial contemporânea foi revelada pela expansão da OTAN ao leste e pelo regime de sanções abrangentes impostas pelos países ocidentais à Rússia. Após a Segunda Guerra Mundial, o sistema colonial europeu começou a desvanecer e, durante a segunda metade do século XX, a ordem mundial passou a estar centrada nas Nações Unidas e no direito internacional, notadamente no princípio de igualdade soberana dos Estados. Entretanto, a ordem hierárquica centro-periferia do sistema colonial europeu não desapareceu de fato. Ao contrário, continua a existir de forma implícita e dissimulada. As hierarquias de poder absoluto impostas pelos regimes coloniais foram substituídas por uma ordem internacional baseada em “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, na qual os Estados são soberanos e iguais em aparência, mas desiguais no exercício efetivo de poder3. Embora os Estados Unidos e seus aliados se refiram a esse sistema internacional como uma ordem “baseada em regras”, na qual cada nação deveria cumprir as mesmas regras, trata-se, com efeito, de uma ordem que gira em torno do Ocidente, e não da ONU e do direito internacional.
A hegemonia dos Estados Unidos no pós-guerra é a encarnação moderna da ordem global centro-periferia. O Grupo dos Sete (G7), estabelecido nos anos 1970, realiza reuniões anuais nas quais Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e os Estados Unidos discutem não apenas questões relativas a estes sete países, mas também questões globais sobre as quais negociam e determinam regras internacionais. A chamada ordem baseada em regras é, com efeito, uma ordem baseada nas regras estabelecidas pelos países ocidentais e seus aliados. O importante, aqui, é quem faz as regras. Nesse sistema internacional, a divisão do trabalho, a oferta monetária, a produção industrial e o estabelecimento de regras são atribuições exclusivas de um pequeno e seleto grupo de países. A posição vantajosa desses países seria rompida se outros países tentassem entrar nesse clube, perturbando a autoridade normativa, o domínio monetário e a superioridade tecnológica mantida pelo regime de propriedade intelectual. O surpreendente crescimento econômico da China nas últimas décadas rompeu precisamente essa ordem mundial centro-periferia do pós-guerra, ameaçando os privilégios estruturais dos países ocidentais, que jamais imaginariam que a China pudesse chegar ao centro do cenário global (mesmo que a China apenas esteja se aproximando dessa posição e ainda não tenha chegado a ela). Como resultado, nos últimos anos os Estados Unidos definiram a China como seu “concorrente estratégico” e demonstraram sua disposição de usar todos os meios para impedir seu desenvolvimento.
A expansão da OTAN para o Leste e a tentativa de Washington de contenção da China são indicações de que os Estados Unidos e os países ocidentais pretendem manter e reforçar suas posições de poder na ordem mundial. O conflito Rússia-Ucrânia e as abrangentes sanções ocidentais contra a Rússia evidenciaram, ainda mais, a verdade sobre o sistema global: a maioria do mundo se encontra no “campo” da periferia global, enquanto apenas poucos e seletos países estão nas “cidades” do centro global, cujo núcleo é ocupado pelos Estados Unidos. Esses países não pretendem ver o “campo” se transformar em “cidade”, como o são. China e Rússia atrapalham o “centro urbano” em dois aspectos fundamentais. Por um lado, devido a sua forte capacidade de controle de capital, os dois países são os maiores territórios do mundo que ainda não foram submetidos a dominação arbitŕaria da globalização capitalista. Por outro lado, sua força nacional é muito maior do que a de muitos países e bloqueia esforços do “centro urbano” de ampliar seu controle sobre o “campo” da periferia global. Durante essa onda de globalização, a China foi do “campo” para a “cidade” com seu crescimento econômico robusto e a ampliação de sua força nacional. Os países do centro, apesar de sua prévia apologia entusiasmada à globalização, agora protagonizam esforços de “desglobalização”, expondo os limites da universalidade da ordem mundial do pós-guerra. A integração da China e de outras nações do “campo” às “cidades” é simplesmente intolerável para os países centrais.
A base de apoio para o multilateralismo está no Sul Global
Desde a década de 1980, a China adotou a política de reforma e abertura e promoveu a cooperação internacional, incluindo, na última década, a apresentação da proposta de construir uma “comunidade de futuro compartilhado para a humanidade” (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ). Esses esforços remontam à antiga noção chinesa de “grande unidade sob o céu” (天下大同, tiānxià dàtóng). No entanto, essa “grande unidade” não pode ser atingida apenas pela vontade da China. No atual contexto de hostilidade aberta do Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, contra Rússia e China, o mundo não pode mais ser visto de forma mecânica, nem é possível presumir simplesmente que todos estejam unidos em torno da paz e do desenvolvimento. Ao contrário, é preciso considerar seriamente as ameaças de competição, conflito e guerra. Ainda que se exclua a guerra dos resultados prováveis, é evidente que não é mais possível que a China continue buscando seu caminho de desenvolvimento no sistema de globalização dominado pelo Ocidente. Assim, a China deve reavaliar sua resposta à questão básica nas relações exteriores: quais países são parceiros potenciais da China, hoje e no futuro, e com quais países a China terá dificuldade de estabelecer e manter parcerias?
Como diz um conhecido ditado chinês, as coisas semelhantes se juntam e as pessoas semelhantes se dão bem (ou, pássaros da mesma plumagem voam juntos). O mesmo se aplica às nações. Aquelas nações que compartilham experiências, contextos e desafios semelhantes tendem a formar relações de cooperação mais sólidas. Desde o século XIX, o mundo passou por uma transformação global conduzida por três componentes principais: industrialização, construção racional de Estados-nação, e ideologias de progresso, passando de um mundo policêntrico, sem centro dominante, para uma ordem centro-periferia altamente interligada e hierárquica na qual o centro gravitacional está no Ocidente.
Entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, imperialismo e globalização foram os dois lados da mesma moeda: o imperialismo impulsionou a globalização, enquanto a globalização reforçou o imperialismo. Juntos, esses processos articulados confinaram as nações periféricas do mundo à prisão do subdesenvolvimento, da qual é extremamente difícil se libertar. O Ocidente, como antigo centro do sistema internacional e berço do imperialismo, produziu tanto a ordem colonial moderna como o sistema de hegemonia dos Estados Unidos, que dominam o mundo desde a segunda metade do século XX. Contudo, muitos movimentos revolucionários, notadamente as lutas anticoloniais do século passado, lutaram para superar a desigualdade e injustiça dessa estrutura global de poder centro-periferia.
Nessa ordem mundial desigual, os países centrais não acolhem de forma justa os países periféricos no centro e se opõem a revoluções na periferia. Assim, para se libertar da subordinação e exploração, os países periféricos precisam trabalhar conjuntamente e, ocasionalmente, explorar as fissuras entre os Estados do centro, cooperando taticamente com Estados centrais quando isso puder contribuir para o avanço da luta. Ao longo do século passado, durante a Revolução Chinesa e a consolidação do poder estatal, as principais forças externas nas quais a China se apoiou eram do Sul Global. Na primeira metade do século XX, o Partido Comunista da China (PCCh) integrou a Internacional Comunista, uma aliança de atores estatais e não estatais entre os povos colonizados e oprimidos do mundo. Durante a Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa (1931-1945), a China se somou à Guerra Mundial Anti-Fascista, levantou a bandeira anti-imperialista e fomentou a luta para desmantelar as estruturas globais de desigualdade criadas pelos Estados imperialistas. Depois que a República Popular da China foi fundada em 1949, a China deu muita ênfase à cooperação com os países do Terceiro Mundo, apoiou os movimentos anti-coloniais e o desenvolvimento pós-independência na Ásia, África e América Latina. Foi de particular importância a participação ativa da China na Conferência de Bandung em 1955 – um passo importante na criação do Movimento dos Países Não-Alinhados em 1961 – onde sua proposta de Cinco Princípios de Coexistência Pacífica (和平共处五项原则, hépíng gòngchǔ wǔ xiàng yuánzé) foi bem recebida. A conferência se tornou um marco das relações da China com o Sul Global, na qual cooperação e solidariedade tiveram um impulso positivo5. Foi com o apoio dos países periféricos que a República Popular da China retomou o assento que lhe é de direito nas Nações Unidas, e se tornou membro permanente do Conselho de Segurança.
A solidariedade e apoio mútuo entre a China e os países da Ásia, África e América Latina continuam sendo componentes importantes da abordagem chinesa às relações internacionais, com ênfase na cooperação multilateral com países em desenvolvimento do Sul Global para defender a soberania nacional e o desenvolvimento, em uma luta conjunta contra a ordem mundial desigual e injusta estruturada pelos países centrais. Apesar de focar em relações com os países periféricos, com o paradigma da “diplomacia omnidirecional” (全方位外交, quán fāngwèi wàijiāo), a China permanece aberta a estabelecer e desenvolver uma cooperação amistosa com os países ocidentais desenvolvidos e outras grandes potências. Entretanto, há que se atentar para o fato de que, no passado, a interação e cooperação entre China e os países centrais sempre tiveram duas pré-condições. Por um lado, a insistência da China em desenvolver relações exteriores tendo a independência, igualdade e benefício mútuos como premissas, e se opondo as hierarquias de poder existentes nas relações internacionais. Por outro lado, os países centrais colocaram um teto em sua colaboração com a China, a saber, a impossibilidade de alteração na posição dos países ocidentais no centro da estrutura global de poder. Sempre que uma dessas duas pré-condições não estava dada, a China – como parte do mundo em desenvolvimento – enfrentou sérios desafios para aprofundar sua cooperação com os países ocidentais, especialmente em matérias políticas.
Ajustando as prioridades geográficas das relações exteriores da China
Nos últimos quarenta anos, deixando de lado diferenças ideológicas e disparidades institucionais entre os países, a China buscou atuar junto com outras nações. Gradualmente, as relações internacionais da China passaram a ser guiadas pela seguinte lógica: as potências são o principal, as áreas do entorno são a primeira prioridade, os países em desenvolvimento são as fundações, e os fóruns multilaterais são os cenários importantes. No entanto, na medida em que a era da globalização chega ao fim, essa abordagem tem encontrado cada vez mais obstáculos. É improvável que o processo de desacoplamento da China em termos econômicos, tecnológicos, de conhecimento e intercâmbio entre as pessoas – iniciado pelos Estados Unidos, ao qual Washington coagiu outros países ocidentais a se somarem –, seja revertido. Pelo contrário, devido à guerra Rússia-Ucrânia, esse processo pode ser ainda mais intensificado.
Desde sua fundação em 1949, a República Popular da China passou por mudanças significativas na direção de sua política externa, todas tendo acontecido em resposta a situações históricas específicas: da proposta de Cinco Princípios de Coexistência Pacífica nos primeiros anos da RPC, à Teoria dos Três Mundos proposta no contexto da normalização das relações China-Estados Unidos nos anos 1970, e à ênfase ao desenvolvimento de parcerias com os países ocidentais como parte da transição à reforma e abertura após 1978. A situação contemporânea é definida pelo que o presidente da China Xi Jinping chamou de “grandes mudanças inéditas em um século” (百年未有之大变局, bǎinián wèi yǒu zhī dà biànjú) e pela tendência crescente dos Estados ocidentais de suprimirem os questionamentos à sua autoridade. Especialmente desde a eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia, os Estados ocidentais explicitaram sua disposição de se unir na pressão e contenção aos países em desenvolvimento, característica da atual ordem dominada pelo Ocidente que irá debilitar as relações internacionais por algum tempo. Não há como a China não ficar altamente alarmada pelas medidas punitivas que o Ocidente impôs à Rússia, já que estas podem ser impostas à China de forma similar no futuro. Por isso, é urgente e necessário que a China reavalie sua tradição de multilateralismo e reoriente a configuração geográfica de suas relações exteriores, fortalecendo suas parcerias com os países em desenvolvimento do Sul Global para fomentar um novo ambiente internacional que favoreçam a segurança nacional e o desenvolvimento de longo prazo da China.
Em 1974, Mao Zedong estabeleceu sua Teoria dos Três Mundos, categorizando os países em três grupos principais, cada um demandando da China uma relação distinta. O terceiro grupo, dos países em desenvolvimento do Terceiro Mundo, era o principal foco da China. O povo e o governo chinês apoiaram com firmeza as lutas justas de todos os povos e nações oprimidas. Tomando como base as práticas e experiências anteriores da China em suas relações exteriores, a teoria delineou prioridades geográficas para os laços da China com outros países, e forneceu um importante guia ideológico para a abordagem do país com relação à cooperação Sul-Sul. Essa teoria permanece de grande relevância e deveria orientar a reconfiguração atual das prioridades geográficas das relações exteriores da China. Ao contrário da ênfase dedicada ao trabalho com países ocidentais desde o início da reforma e abertura há quatro décadas, a China agora precisa trazer o avanço do projeto Sul-Sul para o primeiro plano.
Seja em relação a assuntos diplomáticos, desenvolvimento de longo prazo ou rejuvenescimento da nação, os arranjos exteriores da China terão que priorizar o engajamento com países do Sul Global por um período de tempo considerável. A China deveria configurar suas relações exteriores e promover a construção de uma nova ordem mundial a partir do paradigma dos “três anéis” (三环, sān huán). O primeiro anel se refere às regiões vizinhas da China, ou seja, o Leste Asiático, a Ásia Central e o Oriente Médio, que apresentam elementos importantes em termos de recursos, energia e segurança. O segundo anel engloba os países em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina, com os quais a China tem relações de comércio e investimento e projetos de infraestrutura, e aos quais a China direciona a maioria de sua ajuda externa. O terceiro anel engloba os Estados Unidos, os países europeus e outros países industrializados com os quais a China intercambia produtos industriais, tecnológicos e conhecimento.
No paradigma dos “três anéis”, a primeira e mais importante prioridade para ajudar a construir um novo sistema internacional deveria ser o primeiro anel, ou seja, o Leste Asiático, a Ásia Central e o Oriente Médio. Para promover ainda mais a integração econômica do leste asiático e suas ligações com a Ásia Central e o Oriente Médio, é preciso fortalecer o engajamento e a cooperação entre os países asiáticos. Nos últimos anos, ao promover a diplomacia econômica, a China fez progressos consideráveis em ampliar a integração econômica do leste asiático e a cooperação econômica com diversos outros países desta região. O último grande marco da integração econômica do Leste Asiático foi lançado no dia 1º de janeiro de 2022, quando a Parceria Regional Econômica Abrangente (RCEP pela sigla em inglês) finalmente entrou em vigor, após dez anos de negociação. No entanto, o intercâmbio econômico entre os países do Leste Asiático tem sido crescentemente afetado por forças extra-regionais e questões de segurança nos últimos anos, com disputas sobre direitos marítimos no Mar do Sul da China e a estratégia “Indo-Pacífico” de Washington que fomentam incertezas na região. Como forma de prevenir a exploração de problemas internos da Ásia por forças externas, a China deveria se afastar da “supremacia do PIB”, ou do foco estreito em assuntos econômicos que priorizou anteriormente em suas relações exteriores, e dedicar mais atenção às agendas políticas e de segurança na região, promovendo mais cooperação em matéria de segurança entre os países asiáticos.
A cooperação Sul-Sul é a base material dos novos “Três Anéis”
A base material para o paradigma dos “três anéis” é a cooperação Sul-Sul, conceito que emergiu no fim do século XX e se relaciona com os interesses, solidariedade e apoio mútuos entre os países do Terceiro Mundo6. No século XXI, um novo patamar da cooperação Sul-Sul tem sido estabelecido, tornando esse conceito ainda mais alcançável na realidade. A principal razão para isso é que, nas décadas recentes, diversos países em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina foram capazes de se industrializar ou quase se industrializar ao “subir na escada emprestada”, aproveitando as oportunidades da onda de globalização. Entre esses países, um novo sistema global de produção e circulação material tomou forma, e está a caminho de eclipsar a “escada” original da globalização construída pelos países ocidentais. Esse novo sistema global tem se manifestado em dois aspectos importantes.
Em primeiro lugar, a participação dos países em desenvolvimento na economia mundial mudou significativamente. Em 1980, os países desenvolvidos correspondiam a 75,4% do PIB mundial, enquanto os países em desenvolvimento representavam menos de 25%. No entanto, em 2021, o percentual do primeiro grupo caiu para 57,8% do PIB mundial, enquanto o segundo ampliou sua participação para 42,2%7. O PIB combinado dos países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), somados com Turquia, Coreia do Sul e Indonésia, em termos de paridade de poder de compra (PPC), saltou de 21% da economia global em 1992 para 37,7% em 2021, enquanto a participação combinada dos países do G7 declinou de 45,8% para 30,7% no mesmo período8.
Em segundo lugar, o comércio e investimento recíproco entre os países em desenvolvimento também se tornaram cruciais. De 1997 a 2010, o comércio entre a China e os países da África, assim como com os países da América Latina, aumentou cerca de 22 vezes. Entre 2010 e 2021, o comércio China-África e China-América Latina cresceu novamente, 2 e 2,5 vezes, respectivamente. De 2000 a 2018, o comércio entre China e países árabes saltou de 15,2 bilhões para 244,3 bilhões de dólares, um aumento de 16 vezes em menos de 20 anos10. Outras economias emergentes, como Brasil e Índia, aumentaram acentuadamente seu comércio com países em desenvolvimento. De 2003 a 2010, o comércio do Brasil com os países árabes aumentou quatro vezes, enquanto seu comércio com os países africanos quintuplicou, totalizando 26 bilhões de dólares, um valor superior ao comércio do Brasil com parceiros tradicionais como Alemanha e Japão. E, de 2010 a 2019, o comércio do Brasil com países árabes e africanos aumentou 98% e 68% respectivamente. De maneira semelhante, desde 2001, o comércio da Índia com os países africanos tem crescido a uma taxa média anual de 17,2% e, de 2011 a 2021, aumentou 2,26 vezes
O comércio da Índia com os países da América Latina, assim como com a região do Norte da África e Oriente Médio, experimentou crescimento similar. O volume de comércio entre os países em desenvolvimento está crescendo a uma taxa mais rápida que a média global, enquanto o comércio com os países desenvolvidos continua diminuindo.
No mundo em transformação, uma rede particularmente importante de desenvolvimento econômico emergiu na Ásia, em torno da China. Isso é demonstrado pelas quatro tendências a seguir:
- A Ásia é novamente o centro de gravidade da economia mundial. Em 1980, os países em desenvolvimento da Ásia correspondiam a 13,7% do PIB mundial. Contudo, sua participação cresceu para 24,7% em 2010 e alcançou 35,8% em 2021. No caso dos países do leste asiático (incluindo China, Japão, Coréia do Sul e dez países do sudeste asiático), em 1980 sua participação no PIB mundial era em torno de apenas 16,2%, mas em 2020 esse percentual quase dobrou, alcançando 30%. Enquanto isso, em 2020, a população total dos quinze países membros do RCEP chegou a 2,27 bilhões, o PIB acumulado atingiu 26 trilhões de dólares e o total de importações e exportações superou 10 trilhões de dólares, correspondendo a 30% do total mundial. Segundo o HSBC, a estimativa é que o tamanho acumulado das economias do RCEP se expanda para 50% da economia mundial até 2030 .
- O comércio e investimento mundiais também estão se direcionando para a Ásia. O crescimento consistente da participação asiática no comércio mundial passou de 15,7%, em 1980, para 22,2% em 1990, 27,3% em 1995, 26,7% em 2000, 25,6% em 2001, avançando para 36% em 2020. Atualmente, a Ásia é a principal região comercial do mundo.
- O nível de comércio intra-regional é muito superior ao do comércio extra-regional na Ásia. Entre 2001 e 2020, o comércio interno total da Ásia saltou de 3,2 trilhões para 12,7 trilhões de dólares, com taxa média de crescimento anual nominal de 7,5%. Durante o mesmo período, a participação da Ásia no comércio mundial cresceu de 25,6% para 36%. Em 2020, o comércio intra-regional da Ásia correspondeu a cerca de 58,5% do total de seu comércio exterior.
- O Leste e o Oeste da Ásia estão se aproximando economicamente. Os principais destinos da energia do Oriente Médio se deslocaram dos Estados Unidos e Europa para o Leste e Sul da Ásia.
Atualmente, os países em desenvolvimento conformam a estrutura preliminar para um novo sistema econômico global, mas uma sinergia ainda maior entre eles é necessária para alcançar um patamar mais elevado de conectividade econômica, assim como maior influência política na arena internacional para se libertarem do controle e coerção ocidental. Nesta última década, a China se tornou a maior economia real do mundo (considerando a produção e comercialização de bens e serviços) e a segunda maior economia em geral, assim como o maior parceiro comercial da maioria dos países no mundo. Em 2021, a participação mundial do setor manufatureiro da China era de quase 30%. Sendo o país que produz a maioria dos bens materiais no mundo, a China está em posição similar a dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial (no auge, em 1953, os Estados Unidos representavam aproximadamente 28% da produção industrial global). O que a China pode e deve fazer é tomar a iniciativa de conduzir uma estratégia global que melhore o sistema mundial de intercâmbio material entre os países em desenvolvimento, ou seja, concretizar verdadeiramente a cooperação Sul-Sul.
No entanto, as deficiências persistem. O comércio e investimento entre os países em desenvolvimento ainda dependem fortemente dos sistemas financeiro e monetário dirigido pelo Ocidente. Para que os países em desenvolvimento possam elevar ainda mais sua autonomia política e econômica, e para que as economias emergentes atinjam níveis de influência política no sistema mundial correspondentes a suas escalas econômicas, devem superar sua dependência monetária e financeira do Ocidente. Assim, para construir um novo sistema internacional de “três anéis”, os países em desenvolvimento devem considerar não só os fatores geopolíticos tradicionais, mas também os sistemas mundiais de informação e finanças. Nos últimos anos, a China começou a fazer isso ao desenvolver swap cambial com diversas economias de mercado emergentes. Mecanismos mais abrangentes e de alto nível para a cooperação monetária e financeira devem ser criados entre os países em desenvolvimento. Para isso, é importante aproveitar os mecanismos e plataformas existentes que podem fortalecer a cooperação Sul-Sul, incluindo: a atualização e transformação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII) e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) criado pelo BRICS para impulsionar um sistema autônomo de pagamentos internacionais; fortalecer a cooperação financeira e em matéria de segurança no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), particularmente a cooperação entre China, Rússia, Índia e Irã (ressalte-se que a Rússia também é um país em desenvolvimento e que as economias chinesa e russa são altamente complementares); promover ainda mais a integração econômica do leste asiático no âmbito da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), com esforços especiais para consolidar as realizações do RCEP; a construção de um mercado comum de energia na Ásia, para que os compradores no leste e sul da Ásia e os vendedores do Oriente Médio, Ásia Central e Rússia possam compartilhar o mesmo sistema de comércio e pagamento de energia; fazer uso adequado do mecanismo da Cúpula do BRICS para aprofundar, assim, a cooperação Sul-Sul; e promover a diversificação do sistema monetário internacional e a internacionalização do RMB no contexto da cooperação Sul-Sul, assim como apoiar o status internacional do euro enquanto se protege da hegemonia do dólar estadunidense.
Há cem anos, a direção do Partido Comunista da China propôs a estratégia revolucionária do “cerco das cidades pelo campo” (农村包围城市, nóngcūn bāoweí chéngshì). Na atual era de “grandes mudanças inéditas em um século”, a China e os países em desenvolvimento precisam desmantelar a ordem mundial centro-periferia, superar a hostilidade dos países ocidentais e aprofundar a solidariedade e cooperação entre o “campo” global. O aprofundamento da cooperação Sul-Sul irá criar as condições favoráveis e mobilizar recursos para a construção de um novo sistema mundial de “três anéis”, que pode aliviar as tensões internacionais e permitir que os países em desenvolvimento, incluindo a China, ocupem o lugar que lhes corresponde no centro da ordem política e econômica mundial. Depois de mais de quarenta anos de reforma e abertura, a China deve ajustar sua compreensão de “abertura” e transformar seu pensamento sobre as relações exteriores. Evidentemente, a China ainda deve tentar manter sua cooperação com o Ocidente enquanto for possível, e desde que o Ocidente não tome a decisão de se opor completamente à China.
Orginalmente publicado em Outras Palavras
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