Por Isadora Stentzler
Cerca de 20 famílias avá-guaranis da tekoha (aldeia) Pyahu, localizada no município de Santa Helena, no Oeste do Paraná, correm o risco de ficarem isoladas após um fazendeiro ameaçar fechar a única estrada que liga a aldeia à cidade. A denúncia foi feita pelo cacique Fernando Lopes, que disse conviver com o problema desde que houve a troca do proprietário das terras vizinhas, há cerca de um ano e meio.
“Ele ofereceu R$ 4 mil para fechar a estrada e sugeriu que [eu] abrisse uma estrada no meio do mato”, conta o cacique. De acordo com Lopes, ao menos duas casas já tiveram os limites fechados por cercas. Procurado, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que a “ausência de demarcação [do território] não autoriza o fechamento da estrada pelos particulares”.
A estrada é conhecida pelo nome de Duas Irmãs e tem cerca de 1,5 mil metro, ligando o rio que passa na aldeia até a cidade. Ela é a única via pela qual indígenas da tekoha Pyahu podem ir a Santa Helena vender artesanato, levar as crianças à escola, receber atendimento médico e ir ao supermercado.
Em um vídeo de dois minutos e 50 segundos, compartilhado por Lopes com a reportagem do Brasil de Fato Paraná, e filmado por um indígena da tekoha, a lente está voltada para baixo e só é possível ver dois pares de pernas vestidas com jeans e uma pá apoiada no chão de terra. A reportagem destacou os trechos audíveis do homem que se refere à propriedade como sendo dele:
“Eu sou bão, bão, cara […]Falei com os cara da prefeitura tudo […] É o seguinte, eu tenho meus bichos, cara […] Eu não gosto de incomodar ninguém e não gosto que ninguém me incomode. Então, minha propriedade eu quero cercar […] Os cachorros meus ir incomodar os outros e nem nada, entendeu? Eu falei pra ele, vamo, vamo, vamo abrir aqui, mandar a máquina aqui […] Mas não, não quis, que não sei que tem, que vai pra Justiça […] Veio duas caçamba de terra e mandei de volta, porque dentro da minha propriedade quem manda sou eu, entendeu? […] Eu ia fazer uma grande bobagem, ia colocar tudo cascalhar, ia cascalhar, tudo cascalhar, ia ficar bonito pra ele sair e tudo, entendeu, mas não, ele é ruim, ele que vá […] Esse mato dali pra lá é do homem que não deixa também, e esse aqui não é da Itaipu”.
De acordo com Lopes, quem fala é o proprietário, que chegou a oferecer valores em dinheiro para que ele desistisse da estrada que já existe e abrisse uma via por meio da mata.
Vulnerabilidade
Antes da troca da titularidade da fazenda vizinha, explica Lopes, não havia problema. Isso porque a estrada já existia, embora cruze parte do território vizinho. No último um ano e meio, no entanto, o novo proprietário, conhecido na comunidade como Tafarel, criou empecilhos para o uso do trecho, o que piorou nos últimos meses.
Por ser uma estrada de terra, Lopes conta que procurou a Secretaria de Educação do município de Santa Helena para que a via recebesse cascalho e evitasse o lamaçal em dias de chuva para as crianças poderem ir para a escola, já que a comunidade não possui uma instituição de ensino própria.
Segundo ele, o novo proprietário da fazenda vizinha impediu que o serviço fosse feito. Além disso, entradas de táxis e caminhão com compras de supermercado também teriam sido boicotadas pelo fazendeiro.
“A gente precisa que esse colono que está querendo fechar a estrada libere a estrada do carro do mercado, do táxi”, desabafou o cacique. “Ele não deixa mais entrar nem táxi. Todo mundo tem medo de entrar por causa dele. E a gente também quer que todo mundo tenha acesso, porque precisamos. Para fazer comprinhas e ter as entregas. Vamos esperar que isso seja resolvido essa situação para nós”.
Território em disputa
A situação se torna ainda mais calamitosa pelo histórico do local e aumenta a vulnerabilidade dos indígenas. O processo de retomada da área por parte dos indígenas ocorreu em 2018. Todas as famílias são de descendentes diretos de indígenas expulsos da área que hoje dá lugar ao lago da Usina de Itaipu.
O próprio território é reconhecido como Reserva de Itaipu, mas não pelos indígenas, que sofreram remoções forçadas da região do lago na época de sua construção. O tio e a mãe de Lopes viviam ali, mas precisaram migrar para o Mato Grosso após a inundação da área.
Só em 2018 que ele retomou o espaço junto de sua família e de outras. Desde esse momento, a Itaipu reivindica a área como de preservação ambiental, o que é contestado pelos indígenas que alegam preservar a reserva por ser um território tradicional. A estimativa é de que pelo menos 30 aldeias foram inundadas para dar lugar ao lago, entre elas o local onde foi instalada a Tekoha Pyahu.
Na época da retomada dos indígenas na região, a Itaipu chegou a mover processo pedindo a reintegração de posse. Mas em 22 de março de 2019, o ministro Dias Toffoli, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), acatou, de forma parcial, um recurso da Procuradoria Geral da República (PGR) que pedia a suspensão da liminar da reintegração.
De acordo com o cacique, não houve avanços nisso, mas as consequências seguem sendo sentidas pela comunidade. Lopes denuncia que a Itaipu não permitiu que a Copel, companhia de Energia do Paraná, liberasse energia na tekoha. Também não há banheiro sanitário ou chuveiros para as crianças tomarem banhos quentes.
Agora, com a ameaça do fechamento da única estrada que os liga à cidade, há o medo da fome – por não conseguirem trabalhar e comprar alimentos –, do adoecimento – porque médicos não poderão chegar à aldeia – e do desamparo, já que o cacique alega que a própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) espera uma situação de urgência para agir sobre o problema.
MPF vê irregularidades
Segundo o procurador da república Raphael Otavio Bueno Santos, os indígenas informaram o caso ao MPF no final de setembro de 2022. Na época, de acordo com Santos, o MPF solicitou informações à Funai e esta teria informado que os indígenas e o vizinho estariam em negociações.
No dia 1º de maio deste ano, no entanto, o MPF foi notificado de que a estrada estava sendo realmente fechada e novamente o órgão acionou a Funai, que teria dito desconhecer a situação. No dia seguinte, 2 de maio, a Funai e a Polícia Federal foram acionadas para que fossem ao local e fizessem um levantamento da situação.
Santos afirma que a Funai não compareceu porque, segundo uma normativa interna, seria necessário esperar o prazo de 15 dias para deslocar os servidores. Sem ir até a área, a Funai teria feito um levantamento, alegando que não houve fechamento da estrada.
Atualmente, o MPF aguarda relatório do órgão sobre a vistoria que realizaram no local.
“A falta de demarcação [de terra] prejudica o livre exercício dos direitos dos indígenas sobre o território indígena e acaba gerando situações como estas, mas a ausência de demarcação não autoriza o fechamento da estrada pelos particulares. Atualmente, como há a informação de que é o único acesso dos indígenas à cidade de Santa Helena, a estrada não pode ser fechada. […] A não demarcação do território indígena prejudica o direito dos povos indígenas e leva a conflitos fundiários como este, mas não impede o exercício do direito dos indígenas de se deslocarem à cidade de Santa Helena”, enfatizou o procurador.
A reportagem não conseguiu contato com o proprietário das terras.
Procurado, o Ministério dos Povos Indígenas e a Funai não responderam até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação dos órgãos.
Originalmente publicado em Brasil de Fato.