Li outro dia trechos do livro de memórias escrito por Napoleão quando, miseravelmente abatido e doente, aguardava a morte na Ilha de Santa Helena. Napoleão me impressiona não pela genialidade militar ou pela grandeza histórica. O que realmente me admira em Napoleão são suas observações pessoais e amorosas.
Napoleão, quando estava voltando de alguma campanha no exterior, mandava avisar Josefina. O libidinoso general queria que ela parasse de tomar banho para recebê-lo com cheiro de mulher. Cheiro mulher. Não há essência que se compare remotamente em poder de arrebatamento ao cheiro de mulher. Napoleão tinha toda a razão. A sorte da multibilionária indústria de perfumes femininos é que as mulheres não concordam com Napoleão. E gastam muito dinheiro para alterar o melhor cheiro do mundo. (Em italiano a frase soa ainda melhor. Profumo di donna, nome de um filme italiano do qual lembro apenas isso, o nome. Depois Al Pacino foi o protagonista de uma refilmagem.)
De um modo geral, quanto menos a mulher se afasta dela mesma, tanto melhor. Seios naturais, de qualquer tamanho, são melhores que seios com silicone. Cabelos naturais são melhores que cabelos mentirosos. O cheiro pessoal e intransferível de cada mulher é melhor que o melhor perfume.
Mas o que mais me tocou na leitura do memorial de Napoleão foi uma frase que li no prefácio. Não era exatamente uma reflexão amorosa, mas se presta com perfeição às histórias de amor. Acho que o prefácio era de Malraux, mas não estou certo. Como vocês sabem muito bem, minhas certezas são raras. Cada vez mais raras.
A frase dizia mais ou menos o seguinte: tudo que restava a Napoleão, quando decidiu escrever seu relato em Santa Helena, era lutar pela posteridade. Era sua luta mais importante. Mais que Waterloo, mais que Austerlitz, mais que qualquer outra. A luta pela posteridade. As palavras poderiam fazer por Napoleão o que a espada não conseguiria. E fizeram. Napoleão venceu a luta pela posteridade. A imagem do grande corso é ensolarada como certas manhãs de dezembro na Vila Mar.
Lutar pela posteridade. Às vezes não restam mais opções que essa para o homem e a mulher. É uma situação típica dos finais de caso. O amor já foi derrotado, inapelavelmente derrotado, como Napoleão em Waterloo, e mesmo assim a gente segue cegamente em frente num caminho de sofrimento, angústia, agressões, humilhações. E então perdemos a luta pela posteridade. A imagem que guardamos de um caso de amor que teve tantas coisas sublimes fica irremediavelmente danificada como uma fotografia cortada por uma tesoura.
É preciso ter coragem para reconhecer quando não resta mais que a luta pela posteridade num romance. Somos sempre tentados a ir adiante, na esperança caótica e vã de ressuscitar o que está morto. Eu perdi algumas lutas pela posteridade. Tenho derrotas doídas em história. Lamento o erro histórico de não ter me recolhido a minha Santa Helena particular em certas ocasiões. Lembranças que poderiam me aquecer nos momentos de frio pela vida afora foram destruídas em finais de caso que se estenderam além do que seria razoável. Saber a hora de terminar o romance em nome da posteridade talvez seja a forma mais sublime, e mais difícil, de sabedoria amorosa. Admitir que o único porto que resta é Santa Helena exige uma coragem de Napoleão.