Fiat mantinha sistema de espionagem e sala para interrogar funcionários na ditadura

Atualizado em 19 de junho de 2023 às 0:07
Estrutura atual da Fiat em Betim (MG) – (Foto: Reprodução -Fiat)

Por Vasconcelo Quadros

A Fiat Automóveis S.A. consolidou-se no mercado automobilístico brasileiro nos anos 1980 recebendo benefícios financeiros e isenções fiscais sem precedentes da ditadura militar. Em contrapartida, ela abriu as portas para a espionagem, violação a direitos civis e repressão política no período mais agudo dos anos de chumbo.

A conclusão é da pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), obtida com exclusividade pela Agência Pública, que faz parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”. O levantamento envolveu 55 pesquisadores e foi conduzido pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf/Unifesp), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).

De acordo com os documentos, a montadora italiana e suas consorciadas empregaram por muitos anos um ex-guerrilheiro infiltrado na esquerda cuja traição ajudou a ditadura a destruir a Ação Libertadora Nacional (ALN), uma organização de luta armada que enfrentava o regime. José Silva Tavares, conhecido como Severino ou Vitor, não era um militante qualquer: tinha feito treinamento em Cuba como quadro enviado pela ALN e conhecia por dentro a estrutura e os segredos da esquerda armada. Preso em setembro de 1970 em Belém (PA), foi cooptado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e por agentes do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), com quem fez um acordo para delatar companheiros, que acabaram presos, torturados e assassinados.

Foi através das informações de Tavares que a equipe de Fleury prendeu e matou o jornalista Joaquim Câmara Ferreira, o “Toledo”, sucessor de Carlos Marighella no comando da ALN, numa emboscada executada em 23 de outubro de 1970 em Indianópolis, zona sul de São Paulo. A pesquisa da Unifesp mostra que a traição dele foi recompensada com alterações em seu perfil nos arquivos policiais,  antes classificado como subversivo, o que permitiu, independentemente de suas qualificações profissionais, que a Fiat o contratasse.

O caso confirma também, segundo a pesquisa, que a ditadura se utilizou de empresas amigas para “honrar” sua parte em pactos ilegais e sigilosos arrancados nos porões do regime, nos quais militantes da esquerda eram torturados e pressionados a mudar de lado, tornando-se delatores responsáveis por assassinatos e desaparecimentos.

O reaparecimento de Tavares entre os metalúrgicos mineiros, nos anos 1980, demonstra, de acordo com os pesquisadores, que a Fiat colaborou com o aparelho repressivo através de seu sistema de segurança comandado por agentes ligados aos órgãos de repressão. Reportagem da revista Exame, de 14 de outubro de 2010, anexada à pesquisa, noticia que Tavares tinha assumido o cargo de diretor financeiro de operações internacionais da Fiat mundial, na Itália. A matéria informa ainda que, desde 1983, ele ocupava o cargo de diretor administrativo e financeiro da Fiat Automóveis América Latina.

Indiretamente, a empresa deu apoio a acordos secretos e ilegais, segundo os quais os “virados”, como eram conhecidos os militantes que trocavam de lado, como Tavares, eram também protegidos do regime.

Dados do relatório “Direito à memória e à verdade”, um documento oficial do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, revelam que, de um total de 434 mortos e desaparecidos no Brasil no período ditatorial, pelo menos 52 militantes pertenciam à ALN e foram eliminados entre 1969 e 1974 durante a guerrilha urbana, a maior parte sob tortura após as prisões. Pelo menos 33 deles foram mortos entre 1971 e 1973, quando as traições, infiltrações e execuções se transformaram em decisões envolvendo a cúpula militar para eliminar os focos de resistência urbana.

Agentes infiltrados nas fábricas

O principal agente do regime dentro da fábrica da Fiat em Betim, Minas Gerais, era o coronel da reserva Joffre Mario Klein, já falecido. Ele foi contratado antes mesmo de a montadora entrar em atividade, em 1976, e coordenava o aparato clandestino de segurança dentro da empresa, que, segundo reportagem do site The Intercept Brasil de 2019, anexada à pesquisa, contou com 145 agentes.

A pesquisa da Caaf/Unifesp mostra que relatórios com nomes de empregados eram enviados para averiguação ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e à Coordenação-Geral de Segurança Pública (Coseg), órgãos do governo mineiro controlados diretamente pela ditadura. O coronel responsável pela segurança da Fiat também era demandado pela polícia política.

Um documento acessado pela pesquisa no arquivo da Coseg registra uma conversação entre agentes em que um deles pede que Joffre seja acionado por telefone para informar o órgão sobre a qualificação de dois trabalhadores da fábrica em Betim, Judas Tadeu Barbosa e Cesar Antônio dos Santos, demitidos por terem liderado uma “operação tartaruga” por melhores salários. No pedido havia nomes e endereços. Três dias depois, o papel estava preenchido com qualificação completa dos dois, confirmando a perfeita sinergia entre a polícia política e a segurança da Fiat.

O pesquisador Gustavo Seferian, que coordenou o levantamento, diz que a colaboração com a repressão e os privilégios com os quais contou mostram “um profundo grau de promiscuidade e fisiologia” na relação da Fiat com a ditadura. Segundo ele, a montadora italiana se favoreceu largamente da “ditadura empresarial-militar”, mas também subornou autoridades brasileiras.

Documentos encontrados nos arquivos da montadora em Turim, na Itália, aos quais a Agência Pública teve acesso revelam que militares e autoridades civis mineiras, receberam joias (pingentes de ouro, relógios, tinteiros e outros objetos de valor) no momento em que a Fiat buscava aproximação com a ditadura para a implantação de sua fábrica em Betim no início de 1973.

Uma das listas tem 18 nomes de agraciados com brindes, entre os quais está o então secretário de governo de Minas Gerais Abílio Machado, o qual o comunicado interno da empresa orientava que fosse presenteado com um “mimo de ouro”, presente que se repete a várias outras autoridades. Também aparecem na lista o chefe da polícia de Minas, coronel Celso Ferreira, um delegado da cúpula da Polícia Civil, Edson Derona, e vários secretários de governo.

Os brindes eram parte dos preparativos para a visita do presidente da montadora ao Brasil, Giovanni Agnelli, em março de 1973, para fechar o acordo sobre a construção da fábrica em Betim. Ele foi recebido pelo então ministro das Minas e Energia Pratini de Moraes.

Há, no comunicado, recomendação expressa para que se agraciasse o presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici com a “1ª macchina Fiat”. Gustavo Seferian diz que, ao que tudo indica, se tratava de uma réplica em miniatura de um trator da Fiat, cujas características não foram explicadas no comunicado.

Lista de militares e civis agraciados com “brindes” pela empresa. (Foto: Reprodução)

Para o pesquisador, o conteúdo apurado leva à conclusão de que a Fiat e o regime ditatorial mantiveram relação de profunda articulação e colaboração. “Isso se percebe não só por manter em seu quadro de empregados militares, contar com um sistema de vigilância impulsionado por seus próprios funcionários e facilitado pela P2 (polícia secreta da PM mineira), denunciando sobretudo militantes sindicais, mas também pelo beneficiamento econômico que obteve.”

Segundo Seferian, ocorreram “tratativas diretas entre o governo de MG e o Governo Militar, com o então presidente mundial da Fiat, Gianni Agnelli, com vistas à concessão desses benefícios. Documentos e pessoas entrevistadas pelos pesquisadores afirmam também ter ocorrido “violações sistemáticas a direitos trabalhistas, práticas precarizadoras e atos antissindicais”.

Sistema de espionagem

Segundo relatos de metalúrgicos que testemunharam os episódios em Betim, o sistema de espionagem era constante. Dentro da empresa havia uma dependência, conhecida como “sala do corpo de bombeiros”, usada exclusivamente para interrogar, ameaçar e constranger trabalhadores suscetíveis a delatar seus companheiros por medo de perder o emprego.

O sistema de espionagem, segundo a pesquisa, não se restringia ao ambiente interno: trabalhadores e sindicalistas suspeitos de “subversão” eram monitorados também em locais que frequentavam nas cercanias da fábrica, nas sedes do sindicato e até em suas casas.

Os pesquisadores afirmam que a Fiat tinha por hábito ameaçar seus empregados, especialmente os que tinham proximidade com dirigentes sindicais ou simplesmente conheciam a rotina sindical. Havia um estímulo às delações. Até infrações corriqueiras, como condutas não admitidas no ambiente de trabalho, eram usadas para pressionar.

“Maior gravidade, porém, foram os relatados casos em que se forjavam furtos da parte dos trabalhadores, com vistas a ameaçá-los de dispensa por justa causa e de entregá-los à polícia, resultando o procedimento de constrangimento no pedido de demissão dos mesmos ou a denúncia de colegas por suas práticas políticas”, diz o relatório.

A pesquisa ressalta que a colaboração da Fiat estava ligada diretamente aos atos de repressão, que eram organizados e executados através de informações levadas por “prepostos” da empresa aos órgãos de informação da polícia mineira ou do regime militar. A montadora também permitiu que arapongas agissem dentro da fábrica e, em sintonia com os órgãos de segurança, deu guarida à cavalaria da Polícia Militar (PM) nos momentos de greve, acomodou e alimentou em seu refeitório policiais chamados para reprimir.

O clima de terror imposto pela polícia contribuiu, segundo anotado no relatório dos pesquisadores, para uma tragédia ocorrida no movimento grevista de 1979: a morte, por atropelamento, do operário Guido Leão dos Santos, em 27 de setembro daquele ano.

Aos 23 anos de idade, Guido participava de ato em frente à fábrica quando a cavalaria da PM investiu contra manifestantes provocando dispersão. Assustado, ele correu em direção à Rodovia Fernão Dias e acabou sendo atingido gravemente por um ônibus. O operário morreu numa ambulância da Fiat a caminho do Hospital Nossa Senhora do Carmo, em Betim.

Em 24 dissídios coletivos analisados, dez são relacionados ao período da ditadura, nos quais a pesquisa encontrou ações de violência contra sindicalistas, prisões arbitrárias e violações aos direitos trabalhistas. Diferentemente do regime aplicado em fábricas sediadas na Europa, no Brasil a empresa abriu um precedente grave para os direitos trabalhistas adotando o sistema de terceirização de mão de obra, o que era contra uma súmula do Tribunal Superior do Trabalho (TST), só permitida para serviço de vigilância ou contratação temporária.

A terceirização reduziu salários e precarizou as relações de trabalho. Há, também, denúncias de assédio moral e de outras práticas irregulares, como retenção de salários e de verbas rescisórias, demissões não justificadas, exposição dos trabalhadores a riscos pela falta de segurança, péssimas condições de saúde e de higiene, práticas que se prolongaram até 1988, quando a nova Constituição que substituiu o regime dos generais entrou em vigor. “Esteve assim a Fiat na ponta de lança da precarização de atividades de trabalho até então entendidas como ilícitas no país”, ressalta o relatório da pesquisa.

Relações com a ditadura alavancaram lucros

A relação da Fiat com a ditadura teve início em 1970, quando o então governador de Minas Gerais Rondon Pacheco, durante visita à empresa, em Turim, ofereceu excessivos incentivos e concessões nunca feitas a outras montadoras. De 1973 até a conclusão das obras da fábrica, em 1976, a Fiat ganhou tudo o que reivindicou em facilidades econômicas, fiscais, tributárias e uma série de outros privilégios.

Entre as benesses foram instituídas até isenções de impostos para conversão de moedas e repatriação dos lucros à Itália. A prefeitura de Betim, a pedido dos governos, abriu mão de cobrar impostos sobre serviços, construção, territorial (relacionado ao terreno da fábrica) e circulação de mercadorias.

O contrato previa também abertura de linhas de crédito para capital de giro, um programa habitacional a operários, executado pela Cohab-MG e toda a infraestrutura para a empresa produzir e comercializar seus automóveis: estradas ligando o complexo à Rodovia Fernão Dias, rede elétrica, esgoto, água, telefone e telex, que era o meio de comunicação moderno à época. A Fiat não arcou nem com despesas cartorárias de transferência do imóvel para seu nome.

A cereja do bolo para a montadora foi, no entanto, a parceria acionária do governo mineiro, que, de um capital inicial total previsto de US$ 231 milhões para a nova empresa constituída no Brasil, aportou US$ 71,499 milhões ante os US$ 71,5 milhões injetados pela Fiat, o que tornou o governo mineiro sócio minoritário e a montadora, controladora do empreendimento por uma diferença mínima de valores. O restante dos recursos seria captado de outros cotistas.

Em 1977, para garantir sua parte na parceria e fazer avançar o empreendimento, a Fiat captaria um empréstimo de US$ 165 milhões de um pool de bancos europeus, do qual o governo mineiro seria o avalista. As dificuldades financeiras enfrentadas pela Fiat para honrar os compromissos nos anos seguintes exigiriam mais e mais aportes do governo mineiro, até que, num quarto aditamento ao contrato societário, em 1980, os sócios decidiram por um novo aumento de capital, dessa vez US$ 300 milhões, de cujo montante o governo mineiro aportaria US$ 110 milhões.

O extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), agência de espionagem política no regime militar, acompanhava o desenrolar da parceria e, num informe da agência de Belo Horizonte, de 29 de outubro de 1980, registraria duras críticas do presidente da Volkswagen do Brasil, Wolfgang Sauer, ao governo mineiro por este ter participado de um projeto de grande investimento junto com detentor de capital privado insuficiente.

“Quem não tem condições que fique fora do jogo”, alfinetou Sauer se referindo a negociações que o agente do SNI observou como “críticas que ‘acerbam’ por envolver vice-presidente Aureliano Chaves”.

Em 1975, Aureliano sucedeu Rondon Pacheco — ambos eram nomeados pela ditadura numa época em que nem eleição para presidente e governador era permitida — no governo de Minas e é considerado, mantendo ou ampliando os privilégios, o responsável pela implantação da Fiat no estado. O acordo amarrou as finanças do governo mineiro à Fiat, que só concluiria a integralização do capital como acionista em 1988, com gastos que afetavam o orçamento. Por lei estadual, o volume de aportes acabou sendo limitado pela Assembleia Legislativa estadual ao máximo de 1% da arrecadação.

“A convergência de capitais, que alçaria a Fiat no Brasil a quase uma empresa pública, revela a promiscuidade dos interesses econômicos, sociais e políticos existentes entre o Estado brasileiro no período ditatorial e os capitalistas italianos”, observam os pesquisadores, que anotaram no relatório uma declaração dada à época pelo deputado Genival Tourinho (MDB-MG), classificando o acordo com a Fiat como o “affaire mais duvidoso da história administrativa de Minas Gerais”.

O coordenador da pesquisa sobre empresas e ditadura afirma que a política financeira do Estado como um todo, de uma das maiores economias do país, passou a orbitar o projeto, favorecimento que desagradou à elite industrial no país por representar concorrência desleal, como reclamou a Volkswagen na época.

“A Fiat abriu fronteiras para negócios e tomou vantagens concorrenciais explícitas com a instalação da fábrica em Betim. A empresa passa a ter empenho massivo no país em período posterior ao golpe, o que leva também a ter particularidades quando comparada a outras empresas: nota, por exemplo, vantagens monetárias e econômicas no que assim considerava ser uma “estabilidade política” do regime ditatorial. Inaugurou, por exemplo, práticas de guerra fiscal e favorecimentos econômicos conferidos por estados, que hoje se disseminam largamente no país”, disse o pesquisador à Agência Pública.

Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a Fiat informou por nota que não iria se pronunciar sobre as afirmações do relatório. “Consultamos várias fontes da empresa, mas realmente não há memória de tais fatos. Por esta razão a empresa prefere não se pronunciar.”

Originalmente publicado em Brasil de Fato

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