O cineasta e historiador Ivan Feijó concedeu entrevista exclusiva ao DCM falando de como foi dirigir o último filme, “As Aparecidas”, ainda inédito, estrelado por Eva Wilma, morta em 2021. Ele aproveitou para dar uma pequena aula de história, traçando algumas relações entre o que vivemos com o bolsonarismo, o presente e o futuro:
DCM – Quais foram os processos e obstáculos dos últimos 4 anos para realizar o longa metragem “As Aparecidas“, com COVID 19 e o colapso provocado por uma política de governo baseado na devastação cultural.
Ivan Feijó – A pandemia e o perfil de nosso anterior governo, avesso à cultura, foram as causas fundamentais de nossas dificuldades. Mas após três anos e meio, de muita luta e determinação, conseguimos concluir as filmagens, naquilo que envolve o elenco. Ainda falta a captação de imagens, como cenas de estrada, paisagens, enfim, temos o “movie”, mas falta o “road” do filme, afinal. Nós agora estamos em processo de concluir essa etapa final de filmagem, e depois teremos o desafio de todo processo de finalização, que envolve a trilha sonora, a música incidental, que são componentes extremamente importantes, eu diria fundamentais, para a nossa narrativa, porque a música é o grande alimento da memória, do passado.
Descreva em poucas palavras como foi dirigir um elenco tão diverso e divertido em sintonia fina com a protagonista Eva Wilma, morta em 2021, em seu derradeiro trabalho para o cinema.
Foi complexo, mas um aprendizado profundo. A Eva foi uma grande parceira, assim como todas as outras atrizes. Foi um encontro impressionante, porque são da mesma geração, acima de 80 anos, e trabalharam juntas e se encontraram a vida inteira, então o tempo todo havia um clima de reminiscências. Outros intérpretes são meus parceiros de vida, que já dirigi em outras ocasiões, como Clarisse Abujamra, Milhem Cortaz, Ana Kutner, Dionísio Neto, Flávia Pucci, Guta Ruiz e Sabrina Orthmann. Ou seja, eu não tive problemas no elenco, mas foi necessário estar atento às especificidades das atrizes idosas, porque elas têm uma outra psiquê, que pede um tipo de envolvimento emocional, muito rico, aliás, mas com um tempo próprio. Como sempre aconteceu em meus trabalhos anteriores, os atores foram meu combustível criativo e estávamos em total sintonia.
Como está a vida nesse pós-bolsonarismo?
Falando sobre a história cultural da Espanha no século XVIII, que é a minha especialidade, curiosamente há uma semelhança com os dias atuais no que diz respeito a uma cisão social, porque existia na época uma forte reação conservadora aos avanços sociais que foram implementados pela ilustração espanhola, os chamados afrancesados, que pretendiam reformas estruturais na atuação do Estado, no campo da economia e da educação, principalmente.
Essa onda conservadora dos castizos foi muito negativa e resultou numa catástrofe política no século XIX, quando o movimento ilustrado foi defenestrado do poder. Mas, no caso espanhol, primeiro vieram as reformas, depois a invasão napoleônica e depois a reação conservadora, que estava represada. No caso brasileiro conseguimos enxergar, com a ascensão da extrema direita, uma realidade nacional que não era tão clara, de um país com um perfil radicalmente conservador. Não foi um acidente de percurso a eleição do famigerado em 2018, mas um sintoma visível de uma afinidade eletiva, entre a maior parte da população e o seu representante.
Agora, se existe luz no final do túnel… Acredito que sim, a eleição do Lula foi um passo importantíssimo. O Estado precisa fomentar a educação, ter controle com relação a difusão de falsas notícias e abrir diálogo com a sociedade mais conservadora, abrir canais de esclarecimento. O caminho é longo, exige uma dedicação contínua, mas não há outra solução ou resposta fora da Educação e da Cultura.
Você poderia falar mais um pouquinho sobre o episódio heroico de puro amor a profissão de Eva Wilma?
Eva Wilma foi uma das maiores atrizes da história do teatro, da televisão e do cinema brasileiros. Tinha um senso de profissionalismo que na verdade pertencia à sua geração de artistas, com uma reverência ao ofício e um profundo respeito pelo público. Eu tive o privilégio de aprender esses mesmos princípios com meu mestre Antunes Filho, nos primeiros anos de minha trajetória como diretor. Então, quando eu pedi para a Eva gravar uma voz off para o filme, sendo que logo em seguida ela foi internada, e ela fez isso mesmo estando na UTI do hospital. Fiquei impactado, mas não surpreso, porque essa extraordinária mulher estava mais uma vez, em seu último suspiro, transbordando a sua ética e fazendo nada mais do que o seu trabalho, que segundo ela mesma dizia, é o que trazia dignidade à vida. Foi um presente inestimável poder estar tão próximo da Eva, e tão íntimo do seu processo criativo, em seu último trabalho. Eva Wilma está exultante no filme e espero em breve poder compartilhar esse tributo à amizade e à esperança, que é o filme “As Aparecidas”.