Mesmo sem um calendário definido para o próximo pleito presidencial que deve ocorrer em 2024, o clima político e eleitoral na Venezuela continua se acirrando. O elemento mais recente que deve ter influência direta no processo foi o anúncio feito pela Controladoria-Geral da República (CGR) confirmando que a ex-deputada Maria Corina Machado, pré-candidata da oposição à Presidência do país, estaria inabilitada para ocupar cargos públicos por 15 anos.
A informação gerou diversas reações na Venezuela e no exterior, principalmente de partidos e lideranças políticas da direita que classificam o ato como uma suposta “perseguição do governo venezuelano” contra a opositora por conta de seu favoritismo eleitoral. Maria Corina é candidata nas eleições primárias da oposição que estão programadas para o dia 22 de outubro e, na maioria das pesquisas, ela aparece como favorita.
No entanto, ainda que a última decisão da Controladoria só tenha se tornado pública na última sexta-feira (30), o processo que inabilitou a ex-deputada teve início em 2015 e previa uma proibição de um ano. À época, o órgão alegou “inconsistência e ocultação” de ativos na declaração de bens que a opositora deveria ter apresentado à CGR no período em que ela foi deputada na Assembleia Nacional (2011- 2014).
Em entrevista à emissora estatal VTV em 2015, o então Controlador-geral da República, Manuel Galindo Ballesteros, explicou que não se tratava de “uma suspensão de caráter político, mas sim uma inabilitação para ocupar cargos na administração pública”.
“É uma punição de caráter administrativo e isso foi motivado pela inconsistência, pela ocultação de alguns ativos que ela deveria ter apresentado oportunamente em sua declaração de bens. Especificamente se trata das prestações sociais e alguns auxílios financeiros que ela recebeu da Assembleia Nacional quando exerceu o cargo como deputada. Ao não incluir isso na declaração de bens, a lei contra a corrupção considera isso uma inconsistência que acarreta de maneira automática na inabilitação por 12 meses”, disse à época.
Naquele momento, Machado já não exercia mais o mandato como deputada. A opositora foi cassada em 2014 por aceitar um cargo como embaixadora do governo do Panamá na OEA que serviria, segundo ela, para “denunciar a violência cometida pelo governo”. À época, a Venezuela registrava diversos protestos opositores, conhecidos no país como “guarimbas”, que consistiam em uma estratégia da direita que, derrotada nas eleições presidenciais de 2013, pedia a saída do presidente Nicolás Maduro.
Ao ser notificada da decisão no dia 13 de julho de 2015, Maria Corina disse que a CGR não tinha “legitimidade” para inabilitá-la e que, mesmo assim, iria se candidatar novamente ao Parlamento nas eleições de dezembro daquele ano, ideia da qual acabou desistindo. Além disso, a ex-deputada negou que teria sequer recebido os auxílios parlamentares citados pela decisão.
De acordo com o regimento da CGR e com o texto da própria notificação que foi enviada à ex-deputada naquele período, Machado teria inicialmente 15 dias – sendo possível pedir prorrogação por mais 30 dias – para recorrer da decisão e apresentar contraprovas ao órgão. Além disso, a opositora também teria direito a apresentar ao Tribunal Superior de Justiça (TSJ) um recurso de nulidade da decisão da CGR.
O Brasil de Fato entrou em contato com a CGR para consultar se a ex-deputada chegou a apresentar um pedido de recurso, mas não teve resposta até o fechamento da reportagem. Além disso, nos registros públicos do TSJ, consta apenas um processo do qual Machado fez parte no ano de 2015, em que ela foi testemunha em um recurso apresentado pelo também opositor e ex-prefeito de Chacao Leopoldo López. Não há, portanto, registro público de algum recurso de nulidade que ela tenha apresentado à Suprema Corte do país.
12 meses ou 15 anos?
Ainda que o processo que inabilitou Machado tenha sido iniciado em 2015 e ela tenha sido notificada da inabilitação à época, a punição informada pela CGR no ofício publicado na última sexta-feira (30) é diferente da decisão de oito anos atrás. À época, a ex-deputada foi proibida de ocupar cargos públicos por um ano, mas a sanção mais recente divulgada pela Controladoria fala em 15 anos de inabilitação administrativa.
“Do mesmo modo, se continuou com a investigação patrimonial encontrando-se que a cidadã Maria Corina Machado Parisca […] está inabilitada para o exercício de qualquer cargo público por um período de 15 anos”, diz o documento.
Novos supostos delitos que teriam sido cometidos pela ex-parlamentar também apareceram no ofício revelado na última sexta-feira, como a “existência de fundos administrados por justificar, o que representou uma porcentagem de 50% dos fundos administrados no período avaliado”.
Segundo o ofício da CGR, tais fundos seriam “constituídos por depósitos e notas de crédito de origem não conhecida em bancos nacionais […] e operações de depósitos e notas de crédito de origem não conhecida em moeda estrangeira através da instituição financeira Venezolano de Crédito S.A., Banco Universal/Cayman Branch”.
No ofício, no entanto, não fica claro se a continuidade da investigação patrimonial previa uma nova notificação direta à Machado, para informá-la da nova punição. Além disso, não é possível pela leitura do documento saber quando a CGR decidiu trocar a sanção de 12 meses para 15 anos.
O método pelo qual a decisão se tornou pública também levantou dúvidas, pois foi só após um pedido feito diretamente à CGR por um deputado que o órgão revelou a situação administrativa de Machado. O parlamentar José Brito, do partido de oposição Primero Venezuela, foi à Controladoria no dia 26 de junho para pedir esclarecimentos sobre a inabilitação da ex-deputada.
Para o advogado Francisco Artigas, especialista em Direito Constitucional venezuelano consultado pelo Brasil de Fato, é possível presumir que a ex-deputada tenha sido notificada da decisão antes do documento ser publicado. “A CGR não tem responsabilidade de tornar público um ofício administrativo privado, portanto é possível que Machado ou seus advogados tenham sido notificados de maneira privada”, disse.
Após a divulgação do ofício, a ex-deputada não falou em recurso ou qualquer outro procedimento jurídico. Machado classificou a decisão como “um lixo” e disse que está sendo “perseguida”, mas que ainda pretende ser candidata presidencial.
O documento da CGR ainda cita como “fatos públicos, notórios e comunicacionais” o apoio de Maria Corina ao chamado “governo interino” do ex-deputado Juan Guaidó e suas supostas ligações com a tomada de controle da subsidiária da PDVSA nos EUA, a Citgo, e da petroquímica estatal venezuelana na Colômbia, a Monómeros, e com o congelamento de ativos financeiros do Estado no exterior. A controladoria ainda cita que a ex-deputada defendeu sanções contra a Venezuela.
Quem é Maria Corina Machado?
Engenheira industrial formada pela Universidade Católica Andrés Bello (UCAB), Maria Corina é uma histórica opositora do chavismo. Ela é filha de Enrique Machado Zuloaga, falecido em janeiro deste ano, que foi um dos maiores empresários venezuelanos. Dono da siderúrgica Sivensa, Zuloaga chegou a construir um império ligado ao ramo de metais pesados e energia que, apesar de sua morte, continua sob o comando da família Machado.
Em 2009, o governo do então presidente Hugo Chávez decretou a expropriação de duas filiais da Sivensa. No ano seguinte, em 2010, após uma greve de trabalhadores de outra subsidiária da Sivensa, a Sidetur, Chávez também nacionalizou a empresa.
Nesse momento, Maria Corina já havia entrado há anos para a política. A opositora começou sua militância criando em 2002 a organização Súmate, que se classificava como uma ONG para “monitorar eleições na Venezuela”. No mesmo ano, Machado apoiou o golpe de Estado contra Chávez que chegou a afastar o presidente do poder por 48 horas. Nesse período, o então diretor da principal entidade empresarial do país, Pedro Carmona Estanga, se autoproclamou presidente e assinou um decreto que fechava o Congresso, anulava a Constituição, dissolvia a Suprema Corte e suspendia garantias legais. Maria Corina estava entre centenas de signatários que formaram parte do breve governo golpista e assinaram o “decreto Estanga”.
Já em 2004, a Súmate foi uma das principais organizações que convocou um referendo revogatório para encerrar o mandato de Chávez. O presidente saiu vencedor do pleito com quase 60% dos votos. Após a derrota, os diretores da Súmate foram acusados de conspiração pela Justiça venezuelana por receberam doações do National Endowment for Democracy (NED), instituição estatal dos EUA que possui ligações com a CIA e o Departamento de Estado.
Em 2010, Machado foi eleita como deputada pelo Estado de Miranda, mas não chegou a terminar o mandato pois foi cassada, em 2014, após aceitar um cargo de embaixadora do governo panamenho na OEA.
Durante seu período no Legislativo, a opositora tentou ser candidata à Presidência nas eleições de 2012, mas acabou apoiando Henrique Capriles, então governador de Miranda, que seria derrotado por Chávez no pleito daquele ano. Após ser cassada, Machado amplia suas críticas ao governo e ao sistema democrático venezuelano, alegando “perseguição política” e “falta de condições democráticas”. A ex-deputada apoiou as chamadas “guarimbas” de 2014 e de 2017 que tinham como objetivo forçar a saída do presidente Nicolás Maduro do poder.
Já em 2019, após a autoproclamação de Juan Guiadó como “presidente interino”, Maria Corina se torna uma ativa apoiadora do interinato, do bloqueio imposto pelos EUA e da via inssurreicional contra Maduro. Em diversas ocasiões, a ex-deputada chegou a defender uma intervenção armada estrangeira para derrubar o presidente chavista.
“Se a ameaça não for real, o regime não vai ceder”, disse à BBC em 2019, e em uma entrevista à emissora alemã Deutsche Welle, em 2020, chegou a pedir uma “intervenção militar cirúrgica, que retire Maduro do poder”.
Agora, como pré-candidata presidencial, Machado adota uma postura ultraliberal na economia, propondo a privatização de quase todos os serviços e empresas públicas, principalmente a PDVSA, estatal petroleira que é a principal fonte de receita do Estado venezuelano.
Direita mundial reage, até no Mercosul
Após o anúncio da inabilitação de Machado por 15 anos, a ex-deputada recebeu apoio de diversos líderes de direita e de extrema direita ao redor do mundo. Nomes como a ex-presidente da Bolívia Jeanine Áñez, que assumiu após um golpe de Estado, Santiago Abascal, líder do partido de ultradireita espanhol Vox, e a pré-candidata à Presidência na Argentina Patricia Bullrich manifestaram apoio à opositora venezuelana.
No Brasil, o ex-juiz e senador Sergio Moro também expressou apoio à Machado e teve um requerimento aprovado no Senado nesta segunda-feira (3) para convidar a ex-deputada para uma audiência na Casa.
Os impactos da inabilitação de Maria Corina também foram tema de discussão na reunião de presidentes do Mercosul nesta terça-feira (4). O presidente do Uruguai, Lusi Lacalle-Pou, conhecido crítico do governo Maduro, disse que a decisão comprova que na Venezuela “não há uma democracia plena”. Mario Abdo Benítez, presidente do Paraguai, também se manifestou em favor da opositora e disse que a inabilitação “fere os direitos humanos” de Machado.
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva chegou a citar o caso, dizendo que não conhece “os pormenores do problema”, mas que pretende se informar sobre o tema. “Todos os problemas que a gente tiver de democracia, a gente não se esconde deles, a gente enfrenta eles”, disse o mandatário.
Parte interessada nos diálogos entre governo e oposição da Venezuela, os Estados Unidos condenaram a inabilitação de Machado e afirmaram que a decisão “retira dos venezuelanos os direitos políticos básicos”. Segundo o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, o governo de Joe Biden está preocupado com a inabilitação de Machado e com as reformas que estão ocorrendo no Conselho Nacional Eleitoral.
Já a União Europeia se manifestou através de seu secretário para Assuntos Exteriores, Josep Borrell, que classificou a decisão como uma “tentativa de impedir que membros da oposição exerçam seus direitos políticos fundamentais”.
Caracas, por sua vez, respondeu as críticas estadunidenses e europeias rechaçando o que chamou de “ingerência” e reafirmando a “soberania das instituições venezuelanas”. Nesta segunda-feira (3), durante pronunciamento na emissora estatal VTV, Maduro comentou sobre o processo de inelegibilidade do ex-mandatário brasileiro Jair Bolsonaro e disse que os sistemas de justiça são soberanos para combater ameaças à democracia.