De acordo com o economista Samuel Pessôa, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) e chefe de pesquisa econômica do Julius Baer Family Office, a reforma tributária pode ser classificada como o “Plano Real” do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em entrevista à BBC, o estudioso, que integra o grupo de mais de 60 economistas que assinaram nesta semana um manifesto em defesa da reforma tributária, disse que o projeto pode ter um grande impacto sobre a produtividade e a organização da economia a longo prazo. A proposta do Governo Federal visa simplificar o sistema tributário brasileiro extinguindo tributos como o PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS por um Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS).
Em entrevista à BBC, Samuel Pessôa faz referência à reforma econômica implementada no Brasil em 1994, durante o governo de Itamar Franco, e expõe suas expectativas em relação ao projeto:
BBC News Brasil – No início deste ano, o senhor escreveu que a reforma tributária pode ser o Plano Real do governo Lula 3. O que o senhor quis dizer com isso?
Samuel Pessôa – A premissa é que a estrutura de impostos indiretos do Brasil – por sua elevada complexidade, enorme custo de conformidade, enorme nível de litigiosidade – gera impactos sobre a eficiência econômica e um mal funcionamento da economia.
São efeitos parecidos com os impactos ruins produzidos pela hiperinflação.
Lá atrás, as empresas tinham que ter escritórios financeiros enormes. E em cada esquina, tinha uma agência bancária que não fazia nada, só ajudava as pessoas a conviver com a inflação. Então tinha um monte de recursos da economia que não produziam nada.
Hoje, temos uma complexidade tributária gigantesca – e aqui eu estou falando só dos impostos indiretos: ISS, ICMS, Pis, Cofins, IPI, que são uma zona. Então as empresas têm que ter departamentos de contabilidade gigantescos e gera muito litígio, porque tem muita zona cinzenta.
Tudo isso faz com que o Brasil tenha um passivo tributário que é [equivalente a] quase 60% do PIB. Qualquer país normal tem 1%, 2% no máximo, então 60% do PIB de passivo tributário é insano.
Se a nossa estrutura tributária fosse normal, um monte de recursos das empresas e da sociedade que está sendo gasto só processando pagamento de litígios iria fazer coisas mais úteis – progresso tecnológico, inovação, redução de custos etc.
BBC News Brasil – A ideia então é que a aprovação da reforma pode ter um efeito parecido com o do Plano Real? Quer dizer, podemos ver a economia ficando mais organizada, ter mais crescimento? Qual é o efeito prático?
Pessôa – É exatamente isso que você falou, rigorosamente isso. Acredito que não vai ter um impacto imediato tão grande quanto o Plano Real teve na pobreza. Porque, de fato, a inflação é o “pior imposto” que tem. Porque ela é muito regressiva e afeta muito os mais pobres.
Então acho que aquele impacto imediato que houve [do Plano Real] na pobreza não deve haver.
Mas se considerarmos uma janela um pouco mais longa no tempo – de 10, 15 anos –, o impacto sobre a produtividade e sobre a organização da economia é equivalente. (…)
BBC News Brasil – O Brasil discute essa reforma desde a década de 1990, com várias tentativas fracassadas. O que mudou desde então e por que parece agora haver um sentimento de que “agora vai”, com economistas tão diversos como Laura Carvalho, Guido Mantega, o senhor e o Armínio Fraga assinando um manifesto juntos a favor da reforma?
Pessôa – Primeiro, acho que, neste tema, nós nunca discordamos. Porque é uma questão de microeconomia. A gente discorda mais em geral em macro.
[A microeconomia trata do âmbito das empresas, famílias e indivíduos, enquanto a macroeconomia trata da economia nacional, regional ou global.]
A gente discorda na capacidade da política fiscal gerar crescimento; se maior ou menor mobilidade de capital é bom ou ruim; se intervenção no câmbio é bom ou ruim. Mas, com relação à eficiência da estrutura dos impostos indiretos, todo mundo pensa igual.
Então acho que o que mudou não foi entre os economistas, foi na política.
Primeiro, desde que o Brasil entrou naquela enorme crise [de 2014], estamos fazendo reformas, desde o primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma, em 2015.
E essa reforma tem um processo, ela já andou. Em 2019, ela foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e depois parou. Então tem um processo de acúmulo.
Além disso, tem um outro fato: São Paulo, no governo [João] Doria, resolveu entrar na guerra fiscal, dando benefícios para as empresas se instalarem aqui. E quando São Paulo entra na guerra fiscal, ela meio que perde sentido, e aí os governadores começam a olhar com bons olhos a reforma tributária.
Então acho que tem um amadurecimento do sistema político, o fato de São Paulo entrar na guerra fiscal, e a própria agenda de reformas andando.
Além disso, parece haver um grande comprometimento do presidente da Câmara, Arthur Lira [PP-AL], que quer deixar esta reforma como um legado.