A escalada de violência contra escolas vem num crescente desde o governo Bolsonaro.
Um grupo de doze pesquisadores, coordenado pelo educador Daniel Cara, fez um documento alertando para esses ataques ao gabinete de transição do governo Lula ainda em 2022. As medidas, que apontam para o crescimento do extremismo de direita, ainda não foram implantadas pelo Ministério da Educação.
Para discutir o assunto que tem graves implicações sociais, Cara reuniu professores e militantes em uma superlive do DCMTV.
Participaram intelectuais de diferentes formações. Priscila Naves Tardelli é advogada, mestre em Direito político e econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ela falou sobre as falhas na rede de ensino público.
Andressa Pellanda é coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, integrante do grupo de ativistas pela Educação do Fundo Malala, pós-graduada em ciência política. Pellanda falou sobre a presença de símbolos nazistas diante de alunos menores de idade e a necessidade de melhor aplicação da disciplina de história.
Catarina de Almeida Santos é professora da UnB e integrante do comitê da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Ela falou sobre o perigo da militarização escolar.
Adriano Viaro falou de sua experiência como diretor de escola privada e a “máfia” das apostilas na Educação, enquanto Luka França, coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNU), também fez a sua análise sobre as violências da área.
O professor de Filosofia Renato Levin-Borges, conhecido como Renato Judz, abordou a necessidade do extremismo de direita em amplificar esse medo e apreensão nas escolas.
Eis os destaques da superlive:
Violência às escolas é diferente daquela nas escolas
Daniel Cara introduziu os convidados e explicou o objetivo da live.
Importante dizer que professores e professoras nos procuram querendo saber o que fazer sobre a violência às escolas que se comunica com a violência nas escolas. São dois fenômenos diferentes e falaremos sobre isso. As pessoas querem desabafar e entender como enfrentar os riscos.
Vamos receber várias convidadas, vários convidados para comentar um tema que preocupa todo o Brasil e que temos capacidade de fazer o enfrentamento dessa triste realidade. Da violência contra as escolas.
Acho importante explicar por que eu participo com tanta intensidade desse debate. O assunto surge na transição governamental para o governo Lula. A tristeza a gente já imaginava que ocorreria e ocorreu.
De mais casos acontecendo em um período muito curto de tempo.
Por muitos anos, eu trabalhei com o tema da violência nas escolas. Com artigo científico publicado, participação em eventos e sempre dialogando com uma grande pesquisadora do campo, que é a professora Miriam Abramovay, que tem muita experiência na análise desse tema.
Recebi o convite para participar do ex-ministro da Educação Fernando Haddad, atualmente na Fazenda. Começo a trabalhar no dia primeiro de novembro de 2022, mas a data oficial é 14 de novembro, quando sai a portaria. E esse tema eu já achava importante agendar. No dia 25 de novembro ocorreu a tragédia de Aracruz, cometida por um adolescente que ataca duas escolas. A partir desse momento eu fiz a proposta que é aceita pelo coordenador temático de Educação, o ex-ministro Luiz Cláudio Costa. E ele me deu autonomia para que eu chamasse quem é mais capacitado nessa questão. Mobilizei 12 pesquisadoras.
A grande contribuição desse relatório para o debate brasileiro se dá em duas vertentes. Em primeiro lugar a gente aborda o caso da violência às escolas. Que já é um fenômeno da violência nas escolas. Qual a diferença?
Isso sempre existiu. Existem livros e mais livros sobre violência no ambiente escolar. Há aquele clipe Another Brick in the Wall do Pink Floyd. E o bullying é o exemplo mais prático. As coisas vão avançando e essas violências se comunicam, com impacto social muito grande.
Utilizam-se do impacto dessa violência nas pessoas contra a escola. Usam a frustração dos estudantes para justificar os atos. O ponto concreto é que essa foi a primeira contribuição do documento.
Conexão com a extrema direita
Porém, o relatório tem outra contribuição muito importante e que é criticada por alguns comunicadores de direita. Que mostra a realidade. Ele aponta que há uma mobilização entre esses eventos e uma cultura de extremismo de direita. De caráter neonazista e fascista.
E esse caráter desse extremismo de direita é um fator que a gente encontra em todos os casos no Brasil. Que geraram 41 mortes e 85 feridos, sem cálculo total dos ferimentos nessas pessoas. É uma situação que toma conta do país.
A gente vive um momento delicado e difícil nas últimas semanas. Vejam, o caso de Aracruz ocorre no dia 25 de novembro. A tentativa de ataque no interior de São Paulo acontece no dia 13 de fevereiro. No dia 27 de março ocorre um ataque na Vila Sônia que resulta na morte da professora Elisabete Tenreiro.
No dia 5 de abril já ocorre o caso no município de Blumenau. A gente está vivendo uma escalada desses casos. No próprio dia 27 ocorreram uma série de tentativas de ataques que foram debeladas.
Concretamente é um fenômeno que encontrou espaço na sociedade brasileira e a gente precisa combatê-lo.
“O sistema inteiro falhou”, diz Priscila Naves Tardelli
Estou completamente de acordo com as pontuações do Daniel. O documento do GT de transição foi muito esmiuçado nesse sentido. O que eu vislumbro é uma falha em toda a rede de proteção escolar. Quando o adolescente comete ato infracional, a sociedade inteira falhou.
O sistema inteiro falhou. Defendi isso no meu mestrado, mas a educação de qualidade precisa ser desde o sistema infantil. A responsabilidade é compartilhada entre Estado, família e sociedade na promoção de Direitos de crianças e adolescentes.
Quando acontece um atentado desse tipo, a rede toda falhou lá atrás. Nós todos falhamos. Não é só culpa da família. Não é só o ato. Mais de 30 anos do ECA, mais de 30 anos da Constituição, e não temos a legislação plenamente implementada na sociedade.
A legislação anti-bullying não foi implementada direito até hoje. Há muito o que se desenvolver.
“Governos estaduais e municipais precisam olhar os ataques às escolas”, diz Andressa Pellanda
Estava conversando o Daniel sobre o como o debate sobre a violência nas escolas pegou forte em nós educadores. Foi difícil viver essa semana dando muitas entrevistas sobre o assunto. A gente acaba revivendo o fato e fatos anteriores.
A gente precisa colocar a cabeça no lugar e enfrentar de maneira sistêmica, além das entrevistas no calor do momento. É importante trazer um pouco desse lado mais estrutural, ideias de prevenção e o que fazer a médio prazo.
Queria deixar claro, primeiro, que apesar de que a gente tenha casos hoje e que isso esteja crescendo, nós tivemos que nos desdobrar muito nos últimos quatro anos com outros problemas. Esse último caso de ataque contra escola nos pegou desprevenidos.
Estou recebendo pedidos para conversas nas escolas porque os nossos profissionais e os nossos estudantes estão ficando assustados e com razão. Precisamos olhar com mais seriedade. Os governos estaduais e municipais precisam olhar essa questão.
São necessárias soluções não só emergenciais, mas as de médio prazo e longo prazo para mudar de fato a situação desse debate.
Eu queria falar primeiro sobre as crianças. As crianças desenharem suásticas em mesas. O educador Fernando Cássio, que está no nosso grupo, trouxe uma demanda de crianças que desenharam suástica em uma caderno do colégio Objetivo. Por mais que a “brincadeira” não tenha relação com a escola, que busca combater esse mal, queria trazer luz sobre esse debate. A gente precisa olhar para a história.
Precisamos aprender de novo. E de novo. E de novo. E falar de novo. De forma transversal e não só na disciplina de história. O histórico que tocou a população mundial. O que é nazismo. Como isso é um extremismo de direita sim.
E como a gente precisa ter mais responsabilidade com a nossa sociedade sim, com os símbolos que a gente usa.
Há uma precarização da Educação não só em termos de currículo, mas também na valorização dos profissionais envolvidos. Os educadores não conseguem personalizar a abordagem com alunos, que tem demandas muito particulares cada um. Falta valorização do trabalho.
As mudanças nas grades curriculares diminuíram muito o tempo de estudo de História e simplesmente tirou Filosofia e Sociologia.
Isso é especialmente gravíssimo num momento em que não somente no Brasil, mas no mundo, enfrenta-se uma crise global. Em tempos de crises, os extremismos entram em jogo, especialmente esse extremismo de direita.
No relatório que o Daniel mencionou, a gente discutiu como abordar esses ataques às escolas, usamos bastante o termo radicalização e acabamos deixando de lado essa expressão. Radical, para Paulo Freire, pode ter um sentido positivo, de beber da fonte. E começamos a buscar outros conceitos que explicam melhor o que acontece.
Preferimos usar o termo extremismo de direita, que é utilizado pela Organização das Nações Unidas, a ONU.
Militarizar a escola pública é acabar com a escola pública, afirma Catarina de Almeida Santos
Quando a gente olha para a questão da violência, de violência contra a escola, o processo de militarização da escola, a gente está falando de uma sociedade que não quer olhar as questões estruturais ao invés de solucionar questões centrais. Lembro de Anísio Teixeira. Tudo se delega à escola pública e tudo ela é culpada.
Objetivamente não damos às escolas as condições para ir atrás de recuperar essas questões. Não se quer dar condições que estão na Constituição para resolver o problema.
E quando estamos militarizando a escola pública, nós estamos acabando com a escola pública. Entrega-se a escola para um grupo de militares, tirando da perspectiva do público e do republicano.
Esse grupo de escolas passa a ser gerido pela ideologia desse grupo de profissionais. O que nós vamos fazer? Rifar a escola pública para diferentes profissionais?
Acabar com a lógica do que é a escola pública? Ou essa prerrogativa de mudar é só dos agentes de segurança? O que é a escola pública? Qual é o sentido da escola pública? Quais os princípios que devem reger a escola pública?
A escola pública é pública porque ela precisa ser a escola de todas as tribos. De todas as pessoas. Tem que partir de princípios universais. Não dá para partir apenas de categorias.
A interferência da “máfia do material didático”, segundo Adriano Viaro
Deixei o Rio Grande do Sul e fui para o Rio de Janeiro porque, sendo homem branco que pesquisa o racismo, questões da negritude e quilombos, eu não tive mais aquele local como agradável. Cheguei a ouvir dos meus pares que eu sou um “branco traidor”.
Ouvi isso de grupos acadêmicos. Quando eu me levanto contra o Rio Grande do Sul, dizem que é xenofobia de gaúcho.
Por que falo isso? Porque venho levantando um ponto há algum tempo e me sinto solitário nisso. Que é a máfia do material didático. Porque isso também está vinculado com nossa pauta.
A máfia desse material é dominada por cinco empresas gigantes, se não me engano. Dessas cinco, quatro são multinacionais.
Essas gigantes do material didático fornecem para escolas particulares, e também chegam nas públicas através de licitação, gerando um material de segunda linha.
São essas gigantes que amarram com os governos quem dará a formação continuada dos professores. Isso é engessado em contrato.
Quem são esses profissionais que darão essas aulas? Coaches. Única e exclusivamente coaches.
É o que eu venho denunciando como apocalipse coach dentro da Educação.
Uma apostila estava trabalhando o conceito de mindset, traduzido para mentalidade, colocando para crianças de periferia a mentalidade de rico e a mentalidade de pobre. No material didático dentro das escolas. Com a linguagem do coach, do mindfullness e tudo mais. Quando falamos na necessidade de formação continuada de professores, a gente tem que se preocupar em quem dará esse tipo de formação.
Grosso modo, são sempre as mesmas figuras. Pega um gigante do material didático. O grupo Somos. Esse grupo coloca material na escola pública de segunda linha com outro nome. Leva diretores de escolas para grandes resorts. Tenho até vergonha de dizer que passei um final de semana em Atibaia em um desses.
Foi pago pelas gigantes do material didático. Por que fazem isso? Para alinhar os materiais. Conseguir as assinaturas dos diretores para aprovar.
Junto disso vem os gurus para convencer os professores esses projetos de vida, socioemocional, descartando filosofia, história e geografia.
Há crianças que já “acham ok” piada nazista, relata Luka França
Algumas coisas não dá para criminalizar. Videogame, por exemplo. O problema da violência não é o videogame. O problema é como em várias comunidades há extremistas de direita que cooptam os adolescentes. Senão a gente entra naquele debate que existia nos anos 90 que o problema existe se você joga joguinho x ou y.
Quando a gente fala no nosso relatório sobre as comunidades mais tóxicas e afins, a gente não fala isso porque tem que banir jogos de celular. Isso faz parte da vida social em que estamos inseridos. Tem a ver como a gente vai ter investimento de segurança e monitoramento desses espaços. Como?
Levantamento de quais ameaças são reais ou não. Como está o processo de cooptação de jovens e de adolescentes pela extrema direita. Como isso vai impactando essas pessoas.
A gente vê, conversando com pais e mães que têm relação próxima com seus filhos, do quanto alguns casos de crianças de 13 anos acham que é tudo bem fazer piada nazista.
Não temos como lidar individualmente. Os professores dentro da escola. As famílias dentro do seus espaços. Não há como lidar sem que isso seja um combate para todos. A gente precisa se localizar para encontrar saídas dentro das institucionalidades que não passem pelo vigilantismo.
E sem transformar as escolas em espaços prisionescos. Que não se tornem mais sinônimo de prisões. PM 24 horas não resolve e não resolverá o problema.
Precisamos de investimento que traga a comunidade escolar para dentro das escolas. E não adianta investimento se a gente não verificar a desorganização provocada pela extrema direita dentro das escolas.
Extrema direita quer pânico nas escolas para se tornar mais violenta, pontua Renato Judz
Vejo um bom trabalho do Daniel Cara e da turma daqui pautar. Muitas vezes nós da esquerda ficamos reativos. A gente responde. Só que dessa vez estamos propositivos.
Desde o debate do Novo Ensino Médio, a gente tem conseguido dar balizas. O pessoal começa a perceber. Vejo isso entre colegas e entre pessoas que não são da área. Eu já parabenizo vocês, porque não temos uma máquina nos alimentando monetariamente com robôs.
É um trabalho importante e, ao mesmo tempo, urgentíssimo. Ninguém sabe bem o que fazer.
Como eu estou na sala de aula, tenho sentido a angústia dos colegas. O que eu tenho batido muito é a chamada política do medo. A extrema direita faz isso. Mobilizando esses ataques, o medo e o pânico é tudo o que eles querem. Para eles se tornarem mais violentos. É a solução deles que é a causa do sofrimento e do padecimento.
Querem tornar a escola um lugar não lúdico, não afetuoso, e sim de fortaleza. Esses dias me mandaram um vídeo de uma escola no Alabama. Lá eles têm uma sala retrátil a prova de balas. Quando começa o tiroteio na escola, a professora puxa isso e coloca os alunos dentro. É um absurdo!
Essa estadunização da resposta se vale do pânico. Você sente isso dos colegas. Pega muito em todos nós. Se você não ficou com sua semana estragada com os ataques, você não tem empatia. Em algum nível isso nos estragou.
Veja a live completa.