Publicado originalmente no site do Grupo Prerrogativas
Por Pedro de Araújo Fernandes
O mês de abril de 2021 foi um mês de derrotas em série para a “lava jato”, ou para o que restava dela. Neste mês, o Plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou a incompetência da 13ª Vara de Curitiba e formou maioria para a suspeição de Sergio Moro.
A derrota, contudo, não se restringiu à Suprema Corte e ao mundo do Direito. Ela sofreu, também, um golpe simbólico com a publicação do artigo “Lava-Jato, the Brazilian trap”[1] no jornal Le Monde, com grande repercussão no Brasil e no mundo.
O título da versão em inglês do artigo é uma clara referência ao livro The American trap, que, por alguns meses de 2019, foi o livro mais vendido na Amazon da China.[2] Ele foi escrito por Frédéric Pierucci, um executivo da Alstom (multinacional francesa de energia e transporte) que ficou preso por mais de dois anos em Nova York, acusado de pagar propina a autoridades indonésias. Enquanto estava preso, Pierucci foi abordado por agentes que lhe prometeram que ficaria livre se ele se tornasse um informante da FBI dentro da Alstom. A oferta foi recusada, o que lhe custou uma longa estadia em uma prisão de segurança máxima em Rhode Island.
Durante a prisão o executivo estudou a legislação americana e, também, outros casos de punição a empresas estrangerias acusadas de pagarem propina transnacional. Com base na sua pesquisa, escreveu o livro para denunciar que os EUA estão utilizando leis corporativas, em especial o Foreign Corruption Practice Act (FCPA), como uma arma econômica para desestabilizar concorrentes.
O autor afirma que o seu caso era parte de uma estratégia para enfraquecer a Alstom e facilitar a sua aquisição pela General Electric, o que ocorreu em 2015. Mais do que isso, era parte de uma estratégia global em que uma norma dos EUA dotada de extraterritorialidade, sustentada por uma extensa rede de cooperação – formal e informal – com autoridades de outros países, é mobilizada com fins geopolíticos e comerciais.
O fato de o livro ter sido escrito por um francês e se tornado um best seller na China em 2019 não é mera coincidência. Empresas francesas e chinesas são, há alguns anos, alvos desta estratégia estadunidense e o tema passou a fazer parte do debate público nestes países, assim como passou a estar no radar das autoridades.
A China é o principal rival comercial dos EUA e, no final da década de 2010, um dos pontos mais sensíveis desta rivalidade passou a ser o domínio sobre a tecnologia 5G. Em dezembro de 2018, poucos meses antes da publicação do livro, a CEO da Huawei, líder global no desenvolvimento do 5G, foi presa no Canadá por força de uma decisão da Corte Federal de Nova York, o que ensejou uma forte reação das autoridades chinesas e da opinião pública. No país, o tema é recorrente em programas de notícias, entrevistas e nos jornais.
No caso da França, outras grandes empresas além da Alstom, como a Airbus, a BNP Paribas e a Société Générale, tiveram que pagar multas que chegam à ordem das centenas de milhões ou até bilhões de dólares por terem sido punidas no âmbito do FCPA. A classe política francesa, no entanto, reagiu. As Comissões de Relações Exteriores e de Finanças da Assembleia Nacional produziram um relatório sobre a extraterritorialidade do direito norte-americano, que serviu de subsídio para uma nova lei anticorrupção, a Sapin II.[3]
No Brasil começamos a observar um aumento da consciência nacional em relação a este tema, em especial em relação às multas impostas à Odebrecht e à Petrobras no âmbito do FCPA.
A operação “lava jato” sempre recebeu críticas de vários tipos. Para além das críticas pelos abusos cometidos, pelo desrespeito ao devido processo, pelo fortalecimento de uma ideologia “antipolítica”, ela é criticada, já há alguns anos, por ameaçar a soberania nacional e destruir grandes empresas do país. Neste sentido, o artigo “Lava-Jato, the Brazilian trap”, que causou grande impacto na opinião pública brasileira e de outros países, cumpre um importante papel. Demonstra-se no artigo a articulação entre uma estratégia de instrumentalização do combate à corrupção pelos EUA e a destruição de grandes empresas brasileiras de infraestrutura, empresas estas cuja expansão internacional estava associada a uma política externa independente e voltada para o Sul global.
Essa crítica certamente não é nova. Muitos advogados, entre eles os advogados de defesa do presidente Lula, já a faziam, assim como diversos intelectuais do campo do Direito, da Economia Política e da Ciência Política, incluindo este que aqui escreve.
Contudo, a publicação no Le Monde tem o papel fundamental de legitimar este tipo de crítica e contribuir para retirá-la do registro de uma “teoria da conspiração”, rótulo constantemente acionado pelos apoiadores da operação para desqualificá-la. Em relação à dimensão internacional da “lava jato”, vigorava a perspectiva, orientada por uma falsa noção de neutralidade, de que as inciativas anticorrupção recentes no Brasil – muitas delas louváveis – eram simplesmente a incorporação das “boas práticas” ou “melhores práticas” internacionais de combate à corrupção, seja no âmbito do arcabouço normativo incorporado, ou seja no âmbito das cooperações – muitas informais – estabelecidas entre autoridades locais e estrangeiras.
Não há, neste enquadramento, muito espaço para considerações sobre soberania, conflito internacional e interesse nacional. Em suma, é uma narrativa com muito Direito e pouca Política que, contudo, sustentou uma atuação com pouco Direito e muita Política por parte de uma fração da burocracia estatal que se acostumou a desconsiderar a lei e a se comportar como se fosse o soberano da nação, só que a serviço de interesses alheios.
Qualquer pesquisa com alguma profundidade sobre o tema é capaz de identificar os interesses associados à criação de um regime internacional anticorrupção. A própria história da internacionalização e da aplicação do FCPA, uma lei antipropina dotada de extraterritorialidade, é reveladora.
Desde o seu nascimento, em 1977, a lei enfrentava resistência de setores empresariais dos Estados Unidos, que consideraram estar em desvantagem competitiva em relação às empresas de outros países, que não possuíam normas análogas e que, portanto, não puniam as suas próprias empresas por pagarem propina em território estrangeiro.
Em 1981 o Government Accountability Office (GAO), órgão do Legislativo responsável pela auditoria do Governo Federal dos EUA, reportou para o Congresso dos EUA que as empresas do setor aéreo e do setor de construção seriam severamente atingidas, e que era necessário internacionalizar as provisões antipropina transnacional:
Without an effective international ban against bribery, unfair competitive advantage could be given to non-U.S. firms. (…) Although progress in developing an international agreement has been slow, the United States should continue to take a leadership role in this effort. We recommended that the Congress urge the President to actively pursue an international agreement.[4]
As primeiras inciativas dos EUA para internacionalizarem os preceitos do FCPA esbarravam em entraves relacionados aos conflitos Leste-Oeste e Sul-Norte dos anos 1970 e 1980. Na época, os países socialistas e grande parte dos países de terceiro mundo não queriam a existência autônoma de uma norma internacional antipropina, pois pretendiam incorporá-la ao Código de Conduta das Corporações Transnacionais, uma tentativa – fracassada – de criar uma estrutura multilateral de regras internacionais sobre os direitos e responsabilidades das corporações nas suas relações com os governos.
Com o fim da Guerra Fria tais entraves foram removidos e os EUA conseguiram exportar suas normas por meio de convenções na OEA, OCDE e, posteriormente, na ONU. Vários países, a partir dos anos 2000, passaram a copiar as normas estadunidenses, inclusive o Brasil.
Além das normas anticorrupção transnacional, disseminaram-se normas de combate à lavagem de dinheiro por meio das recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), organização criada pelo G7 em 1989, e, mais recentemente, normas de combate ao crime organizado, por meio da Convenção de Palermo da ONU.
que pese a inegável importância dos esforços internacionais no combate à corrupção, a característica unilateral da sua estruturação revela o quanto eles podem ser problemáticos. Além disso, o que se vê no mundo, hoje em dia, é uma via de um lado só no que se refere às punições. Os EUA punem empresas de outros países com base no FCPA, mas os outros países não punem empresas estadunidenses com base em suas próprias leis.
É possível constatar, com base em dados facilmente acessíveis pela internet, que a partir de meados dos anos 2000 os EUA intensificaram a aplicação do FCPA e passaram a mirar em empresas de outros países. Não só as multas aplicadas tiveram um crescimento vertiginoso, como grande parte das empresas punidas deixou de ser estadunidense e passou a ser estrangeira, e o valor das multas costuma ser bem maior para as empresas estrangeiras.
Esse aumento foi acompanhado do fortalecimento do aparato estatal responsável por combater a corrupção transnacional. Neste sentido, em 2008 foi criada a International Corruption Unit no FBI, e os EUA passara a investir na criação de cursos e fóruns para exportar suas técnicas e criar laços com autoridades locais. Ao mesmo tempo, escritórios internacionais especializados em crime de colarinho branco e compliance encontraram um nicho de mercado e se expandiram. Assim, a prática da “porta giratória” se disseminou entre agentes do FBI e membros do DOJ imbuídos de combater a corrupção, e foi, inclusive, incorporada pelos operadores brasileiro, como o próprio Sergio Moro.
O sucesso desta estratégia, ainda que possivelmente temporário, têm animado políticos do país. Talvez inspirados pelo fundo – suspenso pelo STF – que seria criado com os valores do acordo de leniência da Odebrecht e da Petrobras, congressistas dos EUA apresentaram neste ano um projeto de lei que prevê a criação de um fundo anticorrupção financiado pelas multas do FCPA.
O projeto de iniciativa bipartidária prevê que, para toda multa superior a US$ 50 milhões, US$ 5 milhões deverão ser destinados ao Anti-Corruption Action Fund, e que todos os valores devem ser empregados fora dos Estados Unidos. Os propósitos do fundo são fortalecer a capacidade de combate à corrupção dos Estados estrangeiros, assistir no desenvolvimento de estruturas de governança baseadas no Estado de Direito e fortalecer o arcabouço legal e regulatório de combate à corrupção de outros países, incluindo a adoção das “melhores práticas” do direito internacional.[5]
O nome do projeto é bem significativo: Crook Act. “Crook” significa “ladrão”. No caso, é um acrônimo de “Countering Russian and Other Overseas Kleptocracy Act”. O texto do projeto faz várias referências à Rússia e à China, supostamente líderes de um modelo de governo cleptocrático que se espalha pelo mundo.
O interesse geopolítico do projeto não poderia ser mais claro. Novas armadilhas podem estar se formando. É preciso estar alerta para que o Brasil, desta vez, não caia nelas.