A arte de dizer à amada que você detesta lavar louça

Atualizado em 30 de maio de 2013 às 13:58

Um breve ensaio do escritor cubano Fabio Hernandez.

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Detesto lavar louça. Esta frase simples, banal, com cujo conteúdo todo homem desde Adão concorda integralmente, me valeu uma memorável repreensão da Nadja.

Estávamos ainda no começo de nosso namoro e ela me convidara para jantar em seu apartamento. Comemos um risoto de açafrão quase maravilhoso.

(Claro que, naquela noite, omiti o “quase” e completei a lisonja cavalheiresca ao repetir o prato por amor a Nadja e não ao risoto.)

Terminada a comida, imaginei que fôssemos voltar ao acolhedor sofá de Nadja e trocar juras (e não só juras) apaixonadas, animados pela voz de Sinatra.

Mas Nadja, como quase toda mulher, tem por divisa primeiro o dever, depois o prazer. E então, em vez de se dirigir ao sofá e aos meus braços ávidos, ela apanhou a louça que usara e a levou à pia.

Não sou tão insensível a ponto de não perceber que ela esperava que eu fizesse o mesmo. Fiz, com a ansiedade comovente do apaixonado que deseja agradar o objeto de sua paixão naqueles primeiros momentos ao mesmo tempo tão difíceis e tão fascinantes.

Foi tal a minha presteza que cheguei à pia antes que Nadja. E já cantarolava mentalmente What´s New?, minha interpretação favorita de Sinatra, imaginando um rápido retorno ao sofá e às imensas possibilidades contidas nele, quando Nadja abriu a torneira e começou a lavar a louça.

Olhando para trás, entendo que ela esperava tudo de mim naquele instante em que tinha um prato sujo em suas mãos de anjo. Tudo menos a frase talvez inoportuna, mas certamente honesta, que me escapou como um raio: “Detesto lavar louça”.

Você viu Volcano ou qualquer outro filme que mostre um vulcão em ação? Nadja, quando explode, é mais ou menos daquele jeito. Som, fúria, tremores. “E você acha que eu gosto de lavar louças?”

O eu, pronunciado com a veemência abissal de que só Nadja é capaz, teve o efeito de uma lava ardente sobre meus ouvidos.

“Você acha que qualquer mulher gosta? Vocês, homens, são muitos engraçados.” (Tenho certeza de que “engraçados” foi uma concessão que ela fez a minha primeira visita a seu apartamento.)

Quando penso no episódio, imagino que Nadja tinha em mente um objetivo maior do que minha ajuda desajeitada ali na pia.

Ela queria, sobretudo, que me sentisse culpado. Culpado de mil culpas. Porque o homem culpado é ridiculamente fácil de manobrar e controlar. Basta apresentar-lhe a culpa e pronto: ele faz tudo que lhe seja ordenado.

Mas antes de sucumbir à culpa me veio a questão: por que eu deveria gostar de lavar louça? Por que eu deveria me sentir culpado de dizer que detesto lavar louça?

Também me ocorreu uma frase que ouvi, na adolescência, de Tio Fabio, um homem sábio do interior. “Você vai ser adulto numa época em que as coisas vão estar cada vez mais misturadas. Mas preste atenção, meu filho: existem coisas para homens e existem coisas para  mulheres. Não se esqueça disso e tudo correrá mais fácil para você.”

Note bem. Não estou dizendo que as mulheres devem lavar a louça. (As mãos hábeis de Nadja se prestam a objetivos bem mais interessantes que aquele.)

Estou apenas dizendo que não temos por que nos sentir culpados por detestar lavar louça. Por detestar acompanhar nossas namoradas quando vão comprar sapatos no shopping. Por detestar  ir ao supermercado na manhã de sábado enquanto nossos amigos jogam futebol.

Quando a gente percebe que não tem culpa por detestar essas situações abomináveis, fica mais fácil resolvê-las.

Naquela noite da qual falava acima, minha história com Nadja poderia ter naufragado no inicio se eu reagisse erradamente à repreensão enérgica que ouvi.

Se eu tivesse sujado as mãos, a submissão covarde logo estabeleceria um padrão e cobraria depois um preço. Disse, simplesmente: “Detesto lavar louça, sim”.

Fiz uma breve pausa e completei. “Mas já começo a desconfiar que vou amar loucamente você mesmo com as mãos sujas de gordura.”
Nadja largou tudo e me empurrou para o sofá. Cheguei a ouvir por um instante, ao longe, o som monótono da torneira aberta. Mas logo todos os meus sentidos se concentravam naquela mulher explosiva e formidável. Foi a melhor noite da minha vida, até ali, e Nadja disse o mesmo.

Nenhum de nós sentia culpa de nada.