Publicado originalmente no site Sul21
POR TARSO GENRO, governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil
Pensei em escrever-te pessoalmente, mas como o assunto que quero abordar diz respeito não somente a nós, mas a toda uma situação política dramática que atravessa o nosso país e sobre qual ambos temos -ou tivemos – algum tipo de protagonismo, resolvi fazer uma correspondência pública. Sou um leitor assíduo do que escreves e é óbvio, temos posições completamente diferentes sobre quais as lideranças e remédios econômico-sociais precisamos, para retirar o país desta situação de desigualdade social e proto-fascismo a que chegamos.
Confio que, mesmo com entendimentos diferentes do que isso significa, queremos -neste momento- recuperar um mínimo de dignidade da política no país, violentado todos os dias por um Governo que não tem paralelo na nossa história. Tanto no que refere a sua ruindade, anti-republicanismo, como em matéria de imoralidade e corrupção, incomparáveis com qualquer período republicano ou não republicano da vida nacional. Acho que te recordas que nos conhecemos pessoalmente e que sempre tivemos uma relação de respeito e – embora divergentes – penso que nunca nos colocamos numa postura de desconfiança em relação a nossa integridade recíproca. Nem pensamos que, mesmo estando em posições opostas – nos nossos papeis sociais – nosso diálogo fosse impossível. É é com base nisso que te envio esta carta pública.
A filosofia política que esposo me deu duas lições que tenho por consolidadas na minha formação. Preciso dizer algo sobre elas, para te transmitir -e aos que nos acompanham- a minha mensagem sobre o que penso que nos acontece no momento. A primeira lição que recolhi é que as disputas na esfera da política -portanto na esfera pública- não são disputas entre equivalentes, no que se refere aos projetos que cada um tem na sua cabeça. Logo não basta que dizer que “queremos a mesma coisa para o país” ou para determinados setores da sociedade, para que a política que fazemos seja digna -na mesma intensidade- para os protagonistas em disputa.
Quando coloco, por exemplo, o Haddad e o Bolsonaro como “equivalentes” – embora em polos opostos – estou fraudando a dignidade da política e manipulando mentes para atingir algum objetivo eleitoral. Posso fazer isso iludido, por conveniência, por forças das circunstâncias -sem dolo- mas com minha atitude sobre esta falsa equivalência e falsidade, estou legando para a História -naquele presente- algo da minha moralidade política, mais tarde verificável como “erro” ou “acerto”, em consonância com determinados princípios.
Da filosofa política que esposo também me vem uma segunda lição e que também quero compartilhar contigo: a totalidade histórica não exclui da compreensão da História a sua dimensão ético-política. Não se se reduz a ela, é claro, embora a considere importante por conter elementos da “direção cultural e moral”, num certo momento de “hegemonia”. Esta dimensão ética da política é sempre uma dimensão do “presente” que está sendo vivido, pois os aspectos ético-políticos -que também fazem a História- estão sempre relacionados com o que está acontecendo. A partir da interpretação deste presente é que fazemos uma suposição ou uma mera presunção do que “deve-vir”.
Assim, se num determinado momento acho que de um determinado “mal” – uma violência, uma mentira, uma meia-verdade – posso extrair algo de bom para o futuro, arrisco fazê-lo. No nosso campo político posso indicar como erro berrante, por exemplo, a grosseria de crer na possibilidade de que o Cunha pudesse ter alguma posição digna – que não fosse “comercial” – para evitar o “impeachment” da Presidenta Dilma. No teu campo, a confiança de que valeria a pena “absorver” e promover Bolsonaro e inclusive aceitar notórias fraudes eleitorais -para assegurar as privatizações selvagens e as reformas desejadas pelos Bancos e Agências de Risco- levando o país ao desastre que aí está. Por que digo que a política não é a disputa entre “equivalentes”?
Do resultado destas duas posições, que não se equivalem, temos como consequências mais graves – dando de barato que as intenções de todos fosse o “bem” – a posição ético-política que possibilitou o que temos hoje: um país em desintegração moral e política, que agora exige que todos os protagonistas construam posições novas sobre este resultado. A primeira delas parece-me – dada a gravidade da situação – é julgar o comportamento de cada um no presente, não no passado. E ver o que seu comportamento atual pode provocar de positivo nas outras pessoas que estão sob sua influência. O objetivo desta postura nova, portanto, seria somar com um objetivo central: superar este novo presente, derrotar o fascismo miliciano e retomar a vida democrática do país, longe dele e da necrofilia política que ele exala.
A integridade das pessoas na história é sempre construída processualmente e a “autocrítica” tão exigida, nada tem a ver com autoflagelação, mas com a natureza da “praxis” que vai se abrir no próximo período, que se alimenta de acertos e erros, desejos e princípios, que em alguns momentos também podem sofrer revisões, alusões e exames, para interferir no novo presente. Sempre pensei que a requisição de “autocrítica” do PT pela direita -com raras exceções- fosse uma poderosa propaganda de quem não tinha um projeto humanista e democrático para o país e precisava desviar a atenção do seu vazio -preenchido por uma dura politica de ajustes- que só iria atacar os mais fracos, que o PT -juntamente com as demais formações da esquerda- sempre se propôs a defender.
Esta carta tem a finalidade de te dizer publicamente Miriam -sabendo de tudo que passaste nas mãos de pessoas como as que estão hoje governando o Brasil- que acredito na tua integridade. Um ser humano que passou pelos tormentos que passaste e que conseguiu se equilibrar na vida, fazer-se profissionalmente e projetar-se social e politicamente em todo o país, sempre merece respeito, principalmente pelo que está sendo no seu presente. É na centralidade do presente que temos que saber viver e lutar. É nesta centralidade que – quem sabe – possamos construir no futuro um espaço moral novo, para a compreensão do nossos erros, pois ninguém – de qualquer partido ou posição política – poderá superá-los fora da História. E esta, a História, é também o percurso da nossa subjetividade compartilhada, sem equivalência – é certo- mas com respeito e integridade.