A carta abaixo foi publicada por Afrânio Silva Jardim em seu Facebook. Reveste-se de interesse público por explicitar um sentimento de muitos, nestes tempos estranhos, em que o Afrânio anunciou sua retirada do mundo acadêmico por não acreditar mais no Direito como forma de “regulação justa das relações sociais”. Ao divulgar a carta, Afrânio escreveu:
“Amilton Bueno de Carvalho, escritor, jurista, pensador, magistrado, grande e velho amigo, me fez recordar memoráveis momentos que vivemos juntos. Recordei, ainda, do amigo comum: James Tubenchlak.. Foi ele quem nos apresentou e se despediu de todos nós prematuramente…
O texto que, com orgulho e vaidade, reproduzo abaixo, me comoveu e me marcou de forma muito significativa.
Amilton muito me influenciou em minha formação política e jurídica. Preciso estar com ele ainda este ano … Amilton sempre foi de uma ética e uma dignidade a toda prova. Grande figura humana.”
Segue a carta de Amilton Bueno de Carvalho ao professor Afrânio:
Amigo, precioso amigo, querido amigo – amigo!
É bem verdade que faz algum tempo que não nos encontramos. Ao que lembro a última vez que nos vimos faz, sei lá, uns oito anos, na Escola da Defensoria Pública do Rio. Lá palestramos eu e o grande Geraldo Prado, a convite da amiga Cláudia Thedin. A fala já tinha iniciado quando chegaste para nos assistir.
Mas isso amigo, o tempo distante de presença física, não quer dizer muita coisa – sempre estivemos próximos pela forte ligação afetiva que nos une: o tempo não conta para os afetos.
Somos amigos desde muito. Amizade que alcança nossos filhos. Nossos amigos em comum. Amizade forte. Parceria na luta em favor dos esgualepados. Irmãos de utopia.
Palestramos juntos muitas vezes no Rio – faculdades, eventos. Palestramos juntos em vários Estados. Para minha honra, prefaciaste um de meus livros. Para minha honra, em um de teus livros deixaste marcada a importância que tive na tua escritura. Para minha honra, sempre pude gritar que tenho a ti como uma das pessoas mais íntegras que conheci.
Andamos passeando por praias do nordeste – a primeira vez que recebi advertência por jogar bagana de cigarro na praia veio de ti. A única vez assisti espetáculo de rock pesado foi por tuas mãos na Floresta Urbana no Rio. Muitas vezes ficamos jogando papo até alta madrugada em bares. Através de convite teu ministrei aula para alunos teus na UERJ quando minha Gabinha era criança e estava presente na sala – interrompeu a fala porque queria ir ao banheiro. Contigo palestrei para promotores na região dos Lagos. Juntos estivemos em Curitiba, Vitória, Gramado, Belo Horizonte, Porto Seguro, Maceió, São Paulo. Sei mais lá onde …
Mas o que de fato nos ligou? Não tenho dúvida meu irmão – foi a nossa forte postura ideológica comprometida com os espoliados de sempre. Jamais nos entregamos a favores fáceis do poder. Sempre mantivemos independência geradora de mal-estar nos servis de sempre.
Sempre fomos de esquerda – eu um pouco mais anárquico, tu um pouco mais ortodoxo. Nossa produção sempre teve o mesmo norte: compromisso com a vida digna de todos e para todos, compromisso com a vida e não com a morte, compromisso com forte postura ética – nos atacaram pelas nossas posições, por nossa ‘estética’, mas jamais por nossa atuação profissional.
Na suma: a radicalidade democrática é o que nos fez viver e muitas vezes sofrer porque a damas do poder – esquizofrênico como sempre – sempre estavam à espreita na esperança de que fossemos como elas para, assim, nos atacar.
Procuramos fazer do direito uma trincheira, um local de luta, uma espécie de guerrilha, um espaço em que pudéssemos servir aos débeis e tentar conter a fúria do poder. Sonhamos com justiça – não aquela que diz ser neutra, mas a comprometida com a maioria da população.
Sei lá, amigo, se conseguimos algumas vitórias, mas o certo é que fomos e somos o que somos porque não conseguimos ser diferentes do que somos. Lutamos e continuaremos lutando porque, repito, não logramos ser diferentes.
Por isso, meu irmão, meu querido irmão, ao saber que abandonarás o direito, tenho certeza que jamais te afastarás da luta que sonha com sociedade decente, digna, igualitária, democrática, libertária, fraterna. Outros locais encontrarás para manteres acesa a utópica que tanto nos anima. Eu continuarei no direito, nada sei fazer além disso, nada.
Amigo, nós continuaremos resistindo, seja onde for – somos o que somos e além de não conseguirmos ser diferentes, não queremos ser diferentes, não suportamos ser diferentes. A luta, irmão, continua e continuaremos juntos.
Receba um beijo neste fim de ano de tanto asco ao vermos que o rebanho chegou a Roma.
Amilton,
Natal de 2018”