POR MARIA DO ROSÁRIO, deputada federal pelo PT
Há poucos dias participei de uma sessão solene no Senado Federal em memória do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luis Carlos Cancellier.
Como todas as pessoas presentes, ao ouvir os relatos, fiquei ainda mais sensibilizada com a história de um professor que recebeu uma acusação sem qualquer base, e sofreu constrangimento moral de tal proporção que representaram para si uma sentença de morte.
Na ocasião, todos os depoimentos indicaram que sua morte trágica, alguns dias após ter sido alvo de operação da PF, foi o desdobramento dos efeitos de atos coercitivos praticados contra ele por um sistema de investigação e justiça sedento de mídia, que não se furtou em cometer atos arbitrários e abusos de autoridade para aparecer sob os holofotes de “justiceiros”.
Somente com este sentido é que o reitor foi arrancado de seus afazeres na Universidade a qual dedicou sua vida e conduzido coercitivamente em uma operação que reuniu mais de 100 policiais de todo o País para sua prisão e de alguns poucos servidores da mesma Instituição.
O Estado assim agiu com Cancellier sem que ele nunca tenha se negado a comparecer diante das autoridades ou deixado de contribuir com as investigações em curso. Isso não foi considerado.
Decidiram prendê-lo diante dos olhos da comunidade acadêmica, jogá-lo nu em uma cela, fazê-lo passar por revista íntima, impedi-lo de ter acesso ao apoio espiritual de sua religião, destruí-lo moral e psicologicamente.
Sua carta de despedida é testemunho e denúncia do peso das instituições de Estado quando elas decidem esmagar um indivíduo.
Quanto seremos capazes de fazer cumprir mecanismos que impõem limites para a atuação do Estado e impedir pessoas autoritárias e/ou despreparadas de usá-lo em proveito de suas aspirações pessoais?
Ao que tudo indica, no próprio Senado onde a audiência aconteceu com extremo senso de propriedade, repete-se o arbítrio e a pequenez de interesses que joga a máquina estatal contra cidadãos individualmente.
Explico o porquê:
Menos de uma semana após as denúncias graves daquela sessão, uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado decide levar “sob vara”, para depoimento naquela Casa, portanto coercitivamente com apoio armado da Polícia Federal, o artista plástico Gaudêncio Fidelis.
A referida Comissão que trata de tema tão nobre quanto grave, a violência contra crianças, decide carregar à força para um depoimento quem jamais negou-se a fazê-lo, mas que sinceramente nada fez para receber o tratamento de um criminoso, ainda mais em um tema tão sensível.
Gaudêncio é um cidadão brasileiro sobre quem não há qualquer dúvida de conduta, atitude e compromisso ético com a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes.
Jamais seu nome, sua vida e sua história esteve vinculada à qualquer prática inapropriada ou violenta contra qualquer ser humano.
Mas o que se dirá de Gaudêncio com seu nome estampado em jornais e páginas na Internet carregado para depor em uma Comissão sobre violência contra crianças?
Como podem sentir-se à vontade para tentar lançar nódoa sobre alguém, ao imputar indiretamente sobre pessoa com vida limpa e princípios de dignidade exemplares, a dívida desta convocação autoritária?
Quem revogou a Constituição, os direitos e garantias individuais e as prerrogativas que a cidadania estabelece para parlamentares usarem o poder para mera aparição midiática em suas bases eleitorais?
Por acaso os parlamentares se importam com o que acontece com uma pessoa que não tem nenhuma relação com este tema ser carregado a um depoimento sobre crimes como se criminoso fosse?
Do que o acusam? Do que é suspeito?
Seu crime é ser um artista plástico.
Mais uma vez, nos dias atuais, os artistas são suspeitos do crime de pensar e expressar suas reflexões sobre o mundo na inovadora forma de suas artes. Tanto quanto educadores e acadêmicos, são perseguidos para que caiam em arapucas.
A sessão da Comissão não é outra coisa que não uma armadilha armada, para que dali seus corpos sejam madeira junto com livros e toda forma de arte, alimentando fogueiras em torno das quais gritam os fanáticos ao mesmo tempo que iluminam seus rostos eleitorais, parlamentares sem escrúpulos.
Gaudêncio Fidelis é reconhecido por sua obra e pelas curadorias que realizou, entre elas a da Bienal do Mercosul e da Exposição Queermuseu. Foi diretor geral do Museu de Arte do Rio Grande do Sul. É bacharel em Artes Plásticas pela UFRGS, mestre e doutor em História da Arte pela Universidade do Estado de Nova Iorque.
Conheço Gaudêncio ao longo de toda minha vida. Em meu trabalho de proteção e garantias aos direitos humanos, sobretudo de crianças e adolescentes, de perto ou de longe, pois por vários anos ele viveu em Nova Iorque, sempre contei com seu irrestrito apoio.
Ele é um artista de postura instigante com a coragem necessária para posicionar suas criações e curadorias contra opressões e violências, sem deixar que a linguagem, a estética ou a técnica sejam menos importantes que as causas que expressam.
Uma exposição de arte como a Queer não define previamente ou impõem conceitos, ela nos propõe a liberdade de pensarmos por nós mesmos diante de um mundo de seres humanos diversos [e por isso mesmo não serão divinos?].
Em todo este ataque à arte que está em curso é impressionante a
capacidade que existe em alguns de verem essas obras como um espelho de seus pensamentos perversos. Espalham pânico moral e tingem-se de cal branco como sepulcros, mas há dois mil anos já estamos em alerta sobre o contraste entre a aparente pureza externa e a falsidade das entranhas de fariseus.
A esdrúxula convocação de Gaudêncio não quer debater arte ou cultura, onde seria muito importante sua presença para contribuir no enfrentamento ao corte orçamentário do Ministério da Cultura.
Convocá-lo como um criminoso para uma Comissão sobre violência contra crianças é associa-lo a práticas abomináveis e, portanto, inaceitável!
Destaque-se que os parlamentares que orquestram esse teatro do absurdo, se de fato tivessem atenção aos direitos da infância, não teriam dado seus votos aos projetos, medidas provisórias e emendas constitucionais que levam ao flagelo milhões de famílias nas quais pais e mães não tem emprego, e seus filhos não tem pão.
Não teriam também congelado, via Emenda Constitucional 95, o orçamento da Educação por 20 anos, deixando nas ruas e não nas escolas integrais, as crianças brasileiras.
Em nada a convocação de Gaudêncio Fidelis atende ao interesse da proteção à infância, mas só de nós obrigarmos a dizer isso faz seus detratores avaliarem terem conquistado seu intento.
Trata-se de um flagrante abuso de autoridade, um uso indevido e desproporcional da força do Estado, exatamente como foi praticado contra o reitor Cancelier.
Ainda estamos diante de sua morte e dos ecos da audiência realizada no Congresso Nacional. Precisamos acompanhar para que não fiquem impunes os que usam a lógica de razões de Estado para exorbitarem de suas funções, porque na verdade colocam o Estado a serviço de suas convicções de qualquer natureza: econômicas, ideológicas e religiosas.
O ataque aos artistas em nome das crianças é um uso dessa causa. Serve mais uma vez aos que usam falsamente o discurso de proteção da família, mas não aceitam a família de quem é LGBTI.
Falsos, usam a expressão “homens de bem” com um sorriso no rosto, quando por trás das máscaras escondem homens maus, que exploram o sofrimento das pessoas, que propõem mais armas em um País em que morrem mais de 60 mil pessoas por ano. Procuram luz como holofotes atraem insetos, mas não caminham por uma trilha com luz para os seus pés e tentam levar para estas trevas os desavisados e frágeis.
A Constituição não pode ser desprezada.
Em nome da democracia, da legalidade e da decência, a convocação de artistas é uma violência e o Congresso Nacional precisa dar um basta a isso. Ou precisará explicar quando, afinal, arvorou-se funcionar como tribunal de inquisição?