“Eu gostaria de denunciar um crime de racismo”. Foi o que eu disse ontem ao ligar para a Polícia Militar de São Paulo no seu tradicional telefone 190.
Vi pela TV um jogador uruguaio chamar Elias, meio-campista do Corinthians e da seleção brasileira, de “macaco”. Ficamos, meu pai e eu, falando sobre isso durante quase todo o intervalo do jogo. Um cara desses, dizíamos, tinha que sair de camburão do estádio.
Eu nem preciso falar, todo mundo sabe, mas vamos lembrar mais uma vez: descriminação racial é crime. No Brasil, está na lei n.o 7.716. A pena, segundo a página do Planalto, é de um a três anos de reclusão. Claro que nós não precisaríamos chegar nesse ponto. Ir de lá para a delegacia seria um susto suficiente para o jogador não repetir o ato, e provavelmente para outros também não fazerem o mesmo.
“Será que tem tanta gente assistindo (só no estádio, quase 40 mil pessoas) e ninguém pensa em denunciar?”, pensei. Por via das dúvidas, denunciei eu mesmo. E comecei com a primeira frase do texto, e segui mais ou menos da seguinte forma:
“Crime de racismo?”
“Sim”.
“Qual é o seu nome?”
“Emir”.
“Foi contra o senhor?”
“Não. Eu estou assistindo um jogo de futebol que está ocorrendo na Arena Corinthians pela TV e um jogador chamou o outro de ‘macaco’. Eu gostaria de denunciar. Está documentado na imprensa”.
“Senhor, tem policiamento na região e eles tomarão as medidas necessárias”.
Tum.
Quando a conversa é assim, você sabe que não vai acontecer nada. Mesmo assim, achei que não deveria insistir. Entendo que a profissão policial seja de extrema tensão, e que o racismo talvez não seja a prioridade quando você tem que cuidar de um tiroteio. Mas o mínimo que o cara tinha que ter feito era passar um rádio para um policial no local dizendo “olha, tem gente falando que rolou um crime de descriminação racial aí, dá uma checada”. E eu, bocó, acreditei por um momento que ele poderia ter feito isso.
Quando o jogo terminou, me dei conta do quanto fora trouxa e fiquei puto com o policial. Um pouco mais tarde, no entanto, comecei a pensar sobre Elias e o Corinthians, e na diferença de atitude do goleiro Aranha, então no Santos e hoje no Palmeiras, no caso Grêmio.
Elias seguiu as ordens do treinador. “Não se exalte”. Sábio? Sim, se a sua preocupação for ganhar o jogo.
Mas falamos aqui de um jogo que estava praticamente ganho, num grupo em que não há chances de o time não se classificar. Sabe? Se é final de mundial, sei lá. Mas esse jogo?
Elias ficou ofendido. Estava na cara. Mas por ordem de alguém, o que ele fez foi suprimir a raiva, ou talvez até reprimir.
Eu acredito que o dever do cidadão está acima do dever profissional, talvez com a exceção de situações extremas, como uma final de mundial. Elias, Tite e o Corinthians (será possível que ninguém do Corinthians tenha prestado queixa para os policiais que ali estavam?) optaram pelo dever profissional na frente. Aranha, pelo dever cidadão.
Em tempo: sou fã de Tite e Elias como futebolistas, e sou corinthiano. Mas Aranha teria sido aplaudido por Martin Luther King, Malcolm X, Nelson Mandela, Steve Biko e tantos outros ativistas da igualdade racial. Elias, Tite ou quem quer que tenha colocado o resultado de um jogo na frente de um exemplo tão fundamental para a sociedade, provavelmente teriam sido vaiados.
E no fim, já não sei de mais nada. Não sei de quem foi a culpa. Pode até ter sido minha por não ter insistido com o policial. O que eu sei é que uma pessoa chamar outra de macaco, documentadamente, em rede nacional, com 40 mil testemunhas oculares e sabe-se lá quantas remotas, e sair ileso, como se nada tivesse feito, é uma tragédia para a luta racial.