Estudantes impediram que o vereador Fernando Holiday falasse na semana passada em evento na Unicamp sobre cotas nas universidades. Sabe-se que Holiday, apesar de ser negro, é acusado de ser racista.
Holiday também integrou o MBL e liderou manifestações de censura e sabotagem a eventos culturais que exaltavam as liberdades e as diferenças, como a Queermuseu, em Porto Alegre. E atacou muito as lutas LGBTI+. E Holiday é gay. Pobre, negro, gay e reacionário.
E aí ressurge uma questão lá do tempo da ditadura: a esquerda, que tanto reclama da censura, pode censurar a direita e a extrema direita?
Vou contar uma breve história sobre esse dilema. Em 1982, Pedro Simon (MDB) e Jair Soares (Arena) disputavam o governo do Estado. Um pela oposição à ditadura e o outro pelo partido da ditadura.
Era uma eleição histórica, a primeira para governador desde o golpe de 64. Numa primavera, há exatos 40 anos.
E aconteceu em Ijuí algo parecido com o que se deu em Campinas. Ijuí era (não sei se ainda é) uma cidade onde debatiam até a temperatura da água do mate.
Os dois candidatos foram convidados para encontros com os estudantes da Fidene, que mais tarde seria a Unijuí.
Jair Soares iria falar no CEAP, o Colégio Evangélico Augusto Pestana, que cedeu o auditório. O CEAP era a melhor escola privada da região, mantida pelos luteranos liderados em Ijuí pelo pastor progressista Silvio Meincke. Um humanista exemplar.
Pois Jair Soares tentou falar. O homem deu boa noite e a vaia rolou solta. Pediu licença para continuar falando e a vaia foi ampliada. Tentou falar alto e o auditório, com umas 300 pessoas, falou mais alto ainda.
E assim foi, durante um bom tempo. Jair Soares dizia: nós iremos fazer… E a gurizada gritava: não vai fazer nada, vai embora, abaixo a ditadura.
Até que Jair e os organizadores perceberam que não daria certo e o evento foi encerrado. Ninguém conseguia ouvir nada. O candidato do partido da ditadura não completava uma frase.
O argumento dos estudantes era exatamente esse usado contra o vereador negro considerado racista e sabotador de eventos organizados por defensores das liberdades e da democracia.
Se a ditadura não deixava ninguém falar, se perseguiu, censurou a imprensa e os estudantes e os professores e cassou mandatos, o candidato dos militares também não falaria.
Foi um fracasso como debate, mas uma vitória dos estudantes de esquerda. E eu entrei de gaiato nessa história, como correspondente da Caldas Júnior.
O Correio do Povo publicou um texto de bom tamanho em que eu contava que Jair havia sido vaiado o tempo todo e não conseguira falar.
Marco Antonio Baggio, meu chefe na poderosa Central do Interior da Caldas, me telefonou:
“Temos um problema. O pessoal do Jair foi ao doutor Breno e disse que a tua matéria não conta a verdade. Que Jair falou, foi aplaudido e quase saiu ovacionado. Dissemos que nós confiamos em ti”.
O doutor Breno Caldas era o dono e o Deus da Caldas Júnior. Fui ver o que eu tinha gravado. Era uma gravação precária, com cortes, porque a maior parte do tempo foi tomado pelas vaias. Me assustei porque não tinha uma boa prova.
Mas consegui no DCE da Fidene a cópia de uma gravação feita no palco, com tudo o que havia acontecido, do início ao fim.
Mandei a fita cassete por ônibus e fiquei esperando. Um dia de agonia. Quando me ligaram, eu já sabia que não havia como contestar a gravação com o tumulto. Mas o que poderia acontecer?
Baggio me disse algo como: está tudo resolvido, teu texto contou tudo o que aconteceu.
E assim fui salvo. Os estudantes não deixaram o homem da direita falar, os homens da direita pediram a minha cabeça ao meu patrão, talvez para que eu não escrevesse mais nada na Caldas Júnior, e Jair ganhou a eleição.
Quem tentou me derrubar? Não imagino que tenha sido o próprio candidato. Deve ter sido algum assessor esforçado.
Os estudantes calaram um representante do partido da ditadura, quatro décadas atrás. E Jair Soares era reconhecidamente um moderado dentro da Arena.
Pois a mesma pergunta se reapresenta agora no episódio da Unicamp. As esquerdas também podem cassar a fala da direita identificada com a discriminação, a repressão, o ódio, a mentira e o autoritarismo?
Em determinadas circunstâncias, não necessariamente em debates públicos entre candidatos, que são regulados pela legislação eleitoral, é claro que podem. Como gesto político extremo e legítimo, em resposta a quem atenta contra as falas e as liberdades dos outros.
Foi o que aconteceu naquela primavera de 1982, quando a ditadura já definhava. Foi um protesto contra a ditadura, que só caiu porque foi abalada pela resistência decisiva e barulhenta dos estudantes.
O usurpador das liberdades e da democracia não pode querer desfrutar da democracia que ele mesmo violenta, maltrata e desrespeita, para atacar quem tenta amordaçar. Que fale para a sua turma.
É excesso de republicanismo chamar fascistas para que exerçam seu fascismo num debate organizado por democratas. Não pode. De jeito nenhum.
Publicado originalmente no Blog do Moisés Mendes