POR MIGUEL ENRIQUEZ
Às vésperas de completar 50 anos de vida, a Embraer está deixando de ser uma empresa brasileira. Criada em 1969, em pleno regime militar, sob controle estatal, a companhia de São José dos Campos vai passar sua área de aviação comercial às mãos da Boeing, a maior fabricante de aviões do mundo, pela bagatela de US$ 3,8 bilhões – a área de defesa e de jatos executivos ficará de fora da transação.
Por esse valor, a Boeing, que faturou no ano passado US$ 93,4 bilhões, deverá ficar com 80% do capital da nova empresa que será formada com a Embraer, numa negociação bisonhamente descrita como “fusão” pelo governo Temer. O preço acordado, corresponde a menos da metade dos U$ 8,1 bilhões apurados como lucro líquido da compradora americana em 2017.
A operação, como se poderia esperar, gerou apreensão quanto ao futuro, entre os mais de 16 mil funcionários da Embraer e pela economia de São José e dos demais municípios do Vale do Paraíba, que têm grande dependência da fabricante.
Num primeiro momento, nem mesmo no mercado de capitais, o anúncio do acordo foi bem recebido. Depois de ter tido uma valorização de 64% desde a confirmação do interesse da Boeing, em dezembro do ano passado, as ações da Embraer caíram 14% no pregão da Bovespa, nesta quinta feira,5.
A queda foi justificada por uma certa frustração dos investidores com o valor atribuído à nova empresa que abrigará a área de aviação comercial da Embraer na Boeing, que ficou em torno de US$ 4,75 bilhões. Além disso, a reação negativa foi fortalecida pela divulgação de que o lado brasileiro ficará com uma fatia de apenas 20% do negócio, em vez dos 50% esperados.
A reação mais vigorosa à transação veio do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, que representa os trabalhadores da Embraer. “O governo brasileiro, detentor da golden share, tem a obrigação de vetar a negociação”, afirma em nota o Sindicato. “A operação coloca em risco a soberania e milhares de emprego do setor aeronáutico.” Golden share , ou ações douradas, são ações especiais que garante ao governo a última palavra em decisões estratégicas em estatais privatizadas.
Os sindicalista alegam a falta de transparência nas negociações entre a Boeing e a Embraer, principalmente em relação à continuidade das atividades de suas unidades de produção em São José, Taubaté , Gavião Peixoto, Sorocaba e, Botucatu, no Estado de São Paulo. Eles temem, por exemplo, que sejam mantidas no Brasil apenas áreas como a comercial e de pesquisa, e que a fabricação seja espalhada por outros países, com custos mais atrativos.
Depois de lembrar a capacitação tecnológica, que a guindou à condição de terceira fabricante de aviões do mundo, o Sindicato sustenta que qualquer transação comercial que represente a transferência de controle da Embraer será prejudicial ao país e merece a rejeição de toda sociedade.
Mais do que isso: diante da transação, a entidade propõe a pura e simples volta da empresa ao controle estatal.” A reestatização é essencial para preservar a soberania nacional e o emprego dos trabalhadores brasileiros e barrar o acelerado processo de desnacionalização da empresa.”
Trata-se de uma proposta polêmica, cuja viabilização parece ter escassas possibilidades de se concretizar à esta altura do campeonato, mais de duas décadas após a privatização da Embraer, um caso de sucesso empresarial, que mostra a importância do papel do Estado em fomentar o desenvolvimento de áreas da economia em países como o Brasil.
Principalmente, em setores em que o setor privado não tem apetite para o risco ou condições financeiras para bancar os investimentos necessários.
Na verdade, a despeito da privatização em 1994, ao longo de sua trajetória a Embraer sempre esteve sob o guarda chuva estatal. Inicialmente, em seus primeiros 25 anos de vida, sob o controle direto dos militares, particularmente os da Aeronáutica – seus dois presidentes nesse período, Ozires Silva e Osílio Silva eram oficiais da Força Aérea. O primeiro, fundador da companhia, chegou a exercer um segundo mandato, preparando-a para a privatização no governo Itamar Franco.
Na sua origem, a Embraer foi capitalizada graças aos generosos incentivos ficais dos Imposto de renda, concedidos para que o país montasse sua indústria aeronáutica. A presença do Estado continuou mesmo após a privatização: no grupo de acionistas que assumiu o controle da empresa, figuravam fundos de pensão de funcionários de estatais, como o Sistel, dos empregados do setor de telecomunicações, e o Previ, do Banco do Brasil, além do BNDESpar, o braço do BNDES no mercado de capitais.
O apoio estatal se manteve, mesmo que por outros meios, até hoje. Segundo o Livro Verde do BNDES, publicado no ano passado pelo então presidente do banco de fomento, Paulo Rabello de Castro, entre 2001 e 2016, a Embraer foi a segunda empresa que mais recebeu financiamentos a juros privilegiados do BNDES, entre 2001 e 2016, num ranking liderado pela Petrobras. Enquanto a petroleira recebeu R$ 128 bilhões, a fabricante da aviões ficou com R$ 85 bilhões.
Dona de um faturamento anual de R$ 18,7 bilhões, com clientes para seus jatos comerciais e executivos nos quatro cantos do mundo, a Embraer é um bom exemplo que desconstrói aquilo que economia sul-coreano Ha Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, batizou de ‘Mito do Estado Mínimo”. Autor do best-seller Derrubando a Escada”, combate vigorosamente a falácia de que a participação do Estado como agente econômico, é algo condenável, o melhor caminho para o desastre e para o atraso.
Critico do neoliberalismo, Chang defende a adoção de políticas industriais pelos países, lembrando que nações desenvolvidas como os Estados Unidos e da Europa, já as adotaram em diversos momentos de suas histórias e continuam mesmo adotando, seja com mecanismos de financiamento a investimentos e pesquisa, seja com barreiras tarifárias.
Em entrevista a Silio Bocannera, da GloboNews, Chang cita o caso específico de seu país, a Coréia do Sul, que tinha nos anos 1960, um PIB equivalente à metade do brasileiro. Segundo ele, sempre houve uma forte participação estatal na gestação de empresas industriais em seu país. Visando maiores superavits na balança comercial, o Estado coreano apostou na formação de importantes chaebols, como são conhecidos os conglomerados empresariais locais, mediante financiamentos, subsídios e reserva de mercado. .
Dessa política de estímulos que persiste até hoje nasceram gigantes como a Samsung, a LG, a Hyundai e a Kia, entre outros, que contribuíram para acelerar o crescimento econômico do país asiático. Cinco décadas depois, o PIB coreano, de US$ 2 trilhões está ligeiramente atrás do brasileiro (US$ 2,14 bilhão), mas a renda per capita da população (a Coréia do Sul tem 76 milhões de habitantes, contra 207 milhões do Brasil) está em US$ 39,2 mil, quase quatro vezes maior que a brasileira ( US$ 10,3 mil). E suas exportações atingiram US$ 576 bilhões, em 2017, mais do que o dobro dos US$ 217,7 bilhões obtidos pelo Brasil nas vendas externas.