A encruzilhada do governo: entre o programa eleito ou a armadilha do arcabouço. Por Jeferson Miola

Atualizado em 7 de julho de 2024 às 18:47
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Na campanha de 2022, Lula prometeu acabar com o teto dos gastos.

Em evento no Rio uma semana antes da votação do primeiro turno [25/9/2022], Lula repetiu a pregação feita durante toda a campanha: “Acabou o teto de gastos quando eu for presidente da República. Não é porque eu quero gastar de forma irresponsável. O Brasil está precisando de um presidente arrojado que tome atitude de voltar a investir em infraestrutura rapidamente”.

Nos discursos no dia da posse no Parlatório do Planalto e no Congresso [1/1/2023], Lula disse que o SUS, a educação, os investimentos em áreas sociais, na infra-estrutura e no crescimento foram prejudicados “por uma estupidez chamada teto de gastos, que haveremos de revogar”.

E complementou: “O modelo que propomos, aprovado nas urnas, exige, sim, compromisso com a responsabilidade, a credibilidade e a previsibilidade. E disso não vamos abrir mão. Foi com realismo orçamentário, fiscal e monetário, buscando a estabilidade, controlando a inflação e respeitando contratos que governamos este país”.

Desde sua criação, o Teto foi desmoralizado. Inviável por seu caráter austericida e recessivo, não foi cumprido nem mesmo no período do usurpador Temer, que o criou. E foi estourado em mais de R$ 300 bilhões com gastos eleitoreiros do Bolsonaro no último ano do governo fascista-militar.

A manutenção do Teto ficou, portanto, politicamente insustentável. E, com a vitória épica do Lula na eleição, a proposta de sua extinção ganhou legitimidade, sobretudo diante das urgências de reconstrução do país.

Apesar disso, no entanto, na transição de governo o já indicado ministro Haddad assumiu o compromisso de criar uma âncora fiscal no lugar do desmoralizado teto de gastos.

Naquele contexto, um compromisso desnecessário e que, claramente, seria contraproducente para o próprio governo que iniciaria em 1º de janeiro de 2023, que teria de se sujeitar a uma regra recessiva e de austeridade fiscal auto-imposta, e que dificultaria a execução do programa eleito – como, aliás, se alertava à época, e como se confirma hoje.

O roteiro é conhecido. Na PEC da Transição o governo eleito se comprometeu a encaminhar ao Congresso até 31 de agosto de 2023 um projeto de lei complementar instituindo um novo regime fiscal no lugar da regra do Teto, que acabou revogada da Constituição.

Com quatro meses de antecedência, em 18 de abril de 2023 o governo protocolou o projeto de lei daquele que viria a ser [a armadilha] do Novo Arcabouço Fiscal, o NAF.

Em outubro de 2023, já com a Lei do NAF aprovada [nº 200/2023], Haddad anunciou a meta do déficit zero – outra medida palatável à Faria Lima, porém bastante problemática e prejudicial para o governo.

Economistas antineoliberais criticaram essas escolhas e alertaram para os riscos de especulação e terrorismo financeiro quando o governo fosse obrigado a anunciar a necessidade de ajustes orçamentários devido à inviabilidade do NAF e do déficit zero.

Como uma profecia auto-realizada, a partir do final deste mês de junho o Brasil foi alvejado por ataques especulativos contra o real. Matéria do Estadão [6/7] dá a pista para este esperável fenômeno: “Para analistas, revisão de metas fiscais agravou a percepção de risco do País”.

O anúncio de cortes de R$ 25,9 bilhões e a declaração do Haddad de que Lula determinou que “o arcabouço seja preservado a todo custo” arrefeceram momentaneamente a especulação, porém colocaram o governo numa encruzilhada: ou avança com o programa eleito, ou capitula à armadilha do arcabouço fiscal.

Ainda que não seja a intenção original, o NAF acaba reforçando a captura do Estado pelo rentismo, uma vez que comprime as despesas sociais para honrar o pagamento da segunda maior taxa de juros do mundo – só atrás da Rússia, um país em guerra, sujeito a sanções arbitrárias e vítima do roubo de 300 bilhões de dólares das suas reservas pelos EUA e OTAN.

Se o NAF estivesse vigente nos três primeiros governos petistas [2003 a 2014], Lula e Dilma não teriam podido realizar sequer metade do que realizaram e o combate à fome, à miséria e às desigualdades não teria sido exitoso.

Isso porque a média de crescimento das despesas naquele período foi de 6,47% ao ano, o que significa um desempenho quase três vezes maior que o permitido atualmente pelo NAF, de no máximo 2,5%, mesmo que o PIB e a economia nacional venham a crescer muito acima deste limite.

As oligarquias dominantes não abdicam de um centavo sequer dos mais de R$ 1,4 trilhão que roubam do orçamento da União através da taxa estratosférica de juros e das desonerações, favores e privilégios tributários.

Mas, ao mesmo tempo, pressionam o governo a acabar com a política de aumento real do salário mínimo e dos benefícios previdenciários, assim como com os pisos constitucionais do SUS e da educação.

Há quem veja esta realidade como inevitável, e diga que o governo é obrigado a ceder diante da correlação de forças desfavorável, com um Congresso hostil e dominado por uma maioria direitista e extremista.

Trata-se de uma verdade parcial, porque a austeridade que prejudica os pobres causa perda de apoio popular de um governo que já sofre pesadamente com a sabotagem da oposição bolsonarista liderada por Arthur Lira e Roberto Campos Neto com apoio da mídia hegemônica.

Para um governo cercado pelas finanças, militares, oposição, mídia, grande capital, perder sustentação e apoio popular poderá representar um risco fatal.

Se continuar a trilha do arcabouço fiscal, o governo Lula poderá amargar uma derrota histórica que atingirá não só a esquerda, mas a própria democracia liberal-burguesa.

Originalmente publicado no blog de Jeferson Miola

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