A estranha sensação de resgatar um cão à beira da morte. Por Marcelo Zorzanelli

Atualizado em 29 de janeiro de 2016 às 9:38

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Não era  meu amigo. Mas certamente foi o grande amigo de alguém. Durante o dia  em que tive de esperar para fazer algo por ele, algumas teorias sobre seu passado chegaram a frequentar minha cabeça. Teria sido o cão de um mendigo viajante, amigo de um desses párias cujo domicílio fixo é a garrafa de cachaça? Teria o amigo morrido e deixado-o para trás?

Seria velho? Quão velho? Não conheço sobre cães o quanto gostaria mas ouvi dizer que quando os de pelo preto e curto ficam salpicados de branco na cabeça e nas patas, é sinal de que estas últimas já cavaram muito e pedem descanso. Velhos sem dúvida eram seus olhos. Fiz questão de ter certeza se ele ainda enxergava quando nos vimos pela primeira vez. Nem precisava tê-lo feito seguir minha mão com o olhar. Dentro do preto das pupilas havia atenção, havia o suave alerta do bicho de que olha outro bicho nos olhos.

Não preciso nem vou me estender na descrição do estado físico de seu corpo. É triste o suficiente saber que moscas e formigas já haviam começado seu trabalho no grande esquema das coisas que chamamos cadeia alimentar. Basta também saber que o dei por morto quando lhe vi primeira vez em frente à árvore sob a qual se deitara na manhã sufocante do domingo de verão. Quando olhei para trás, metros adiante, quase caí da bicicleta ao perceber que sua cabeça havia se mexido. Ele a ergueu como se um fio invisível puxasse apenas um de um lado. Um instante depois, o fio imaginário estourou e a cabeça caiu de volta ao estado inicial entre as patas dianteiras estendidas no chão.

Alguns minutos depois, ainda pedalando para longe dele, estava decidido a fazer algo. Voltei e… cadê cachorro?  Não sei se inspirado por nossa troca de olhares — mas fato é que havia se escondido entre o mato mais alto atrás da árvore. Fui até lá: vivo, sem dúvida. A cabeca grande e retangular assumiu a posição mais altiva que a saúde do dono permitia e acabou produzindo um latido abafado. Quase cômico, o latido.

Não seria digno rir na hora mas, lembrando depois, sorrio com essa qualquer coisa de engraçado no bicho danado que mesmo na pior não cede e late até para a mão que alimenta. Esta comunicação verbal permitiu que eu avaliasse sua dentição: perfeita, com caninos avantajados que brilharam no sol. Seguiu-se uma pausa para respirar e, juro, um menear de ombros antes de voltar a deitar a cabeça. Uma esnonada.

Uma hora depois eu voltava com água e ração. Comeu, levantou-se para comer e pude ver que uma pata estava retraída e não tocava o chão, herança de um atropelamento. Tentei ajeitar o pote de ração e recebi um aviso na forma de um rosnar que se intensificava à medida que a mão se aproximava e terminava num latido corajoso. Coloquei água e bebeu um litro. Como, pensei, os barraqueiros que vendem banana e abacaxi a cinqüenta metros daqui não tiveram esta ideia antes? Um boiadeiro negro se aproximou de mim e disse que não sabia que o cachorro ainda comia. Disse que levaria leite para ele no outro dia.

Voltei mais tarde no mesmo domingo mais duas vezes para levar mais ração e água. Em casa, tentava contato com algum veterinário na cidade pequena de praia. Nada. Pela internet, no entanto, recebi de um grupo de mulheres que salvam cães na região com o próprio dinheiro e sem qualquer ajuda oficial a esperança de que ele seria consultado.

A história já está me saindo muito longa, então vamos lá: dormi pouco de domingo para segunda. Não tinha carro ou ajuda para tirá-lo de lá e esperar era a única escolha. Dia seguinte, o tenaz grupo de salvadoras conseguiu veterinária para a tarde. Esperei na chuva algumas horas e acabou que uma cesárea de emergência tomou o lugar do cão. Sem saber o que fazer, decidi que o cachorro não ficaria ao relento: peguei um carro de carroceria emprestado com um conhecido de um conhecido ao fim de seu expediente, comprei focinheira e lá fui sem um plano decente. Rodando o bicho, ainda tentando imaginar por onde pegar o corpo frágil (e com medo dos caninos), eis que ocorre um pequeno milagre para animar um pouco a história: estacionou atrás de mim um carro e dele saiu uma mulher falando meu nome.

Eu havia compartilhado o endereço do cão com as mulheres e uma delas apareceu com uma caixa de papelão e disposta a colocar o cachorro em seu próprio carro de passeio. Sem piscar, ela entrou no mato (de salto, acabara de sair do trabalho no escritório) e quando reparei já passava a mão na cabeça do cão que nem fez menção de latir. Distraiu-o enquanto meti nele a focinheira e comigo colocamos o velhinho na caixa. Minutos depois o cão estava na garagem de minha casa.

Nao é exagero dizer que fiquei feliz como há muito não acontecia; a noite avançava, o socorro ficava mais próximo e o cão parecia sorrir para mim. Sentado a seu lado, vigiando sua respiração, imaginava de novo as aventuras que ele havia vivido. Quantos filhos, netos e bisnetos nao teria pelo mundo? Quantas rodas de carro não teriam passado maus bocados com sua presença, seja com os jatos que demarcam território ou com os latidos das perseguições desembestadas?

Quantas pessoas chatas não teria mordido? Será que conheceu muitos lugares? Gostava do mar? Podia muito bem ter sido o cão de um pescador, coisa comum na cidade. De repente, a imagem de seu perfil elegante (era bonito e esguio de pé, mesmo naquela condição deletéria) na proa de um barco de pesca passou por minha mente e aqueceu meu coração. Disse para mim mesmo que o chamaria de Lázaro, como na Bíblia, se melhorasse. Mas não ainda. Ter esperança pode ser algo perigoso.

No dia seguinte, oito horas da manhã, seria consultado numa clínica das mais bem equipadas do lugar. Sonhei com ele. Era um sonho em que eu fazia ajustes em minha vida para tomar conta do animal doente. Vocês sabem como são essas coisas de sonho; o cachorro andava de cadeira de rodas num certo momento, depois corria num morro de grama verde, chegava a dizer algo, enfim, mas o importante é que era de minha responsabilidade. Nunca foi este o plano no mundo dos acordados (pensei em fazer campanha para achar outro lar para ele) mas eu já fazia carinho em sua cabeça e suas costas sem medo, então…

Seis da manhã, minha mãe diz que ele havia saído do canto em que o deixei. Está se mexendo, que ótimo, pensei. Sim, ele não respirava quando cheguei mais perto para ver. Estava morto e ainda um pouco quente. Algum tempo depois, eu mesmo o enterrei na terra preta de um descampado nos limites da cidade.

Não contei mais cedo o que disse a mulher que me ajudou a reagatá-lo. Ele está morrendo, ela disse, sem desesperança nem tristeza na voz, como se fosse uma informação óbvia. A verdade é que ele morreria sozinho no mato com ou sem os cuidados que dei durante um dia e meio.

Mas se eu não tivesse feito o que fiz, jamais recuperaria o direito de passar em frente àquela árvore sem sentir no coração a dor de ter abandonado um amigo para morrer. Mesmo que amigo por apenas um dia.