Por Kakay
“Morrer
como quem desagua sem mar
e, num derradeiro relance,
olha o mundo
como se ainda o pudesse amar.
Morrer
depois de me despedir
das palavras, uma a uma.
E no final,
descontada a lágrima,
restar uma única certeza:
não há morte
que baste
para se deixar de viver.”
Mia Couto, Aprendiz de ausências
Muito estranho e triste o momento pelo qual passa o Brasil. Enfrentar uma pandemia, a mais grave crise sanitária de todos os tempos, já é um drama real de dimensões avassaladoras. Enfrentar essa tragédia com um Presidente sádico e negacionista praticando a necropolítica é como se fôssemos abandonados em um barco sem rumo numa tempestade, à beira de um precipício. Como diria Achille Mbembe, não é só deixar morrer, é fazer morrer também.
A falta de empatia chega a nos dar a impressão de uma mente sem nenhuma capacidade de discernimento. Alguém a quem a dor do outro não consegue sensibilizar por absoluta falta de formação humanista, ética.
Se não impressiona o fato de as pessoas estarem morrendo nos corredores, nas ambulâncias, com a agonia indescritível da falta de ar, da falta de esperança, da falta do contato dos entes queridos na hora da partida, deveria comover-se pela possibilidade de o vírus inocular pessoas com alguma proximidade afetiva. Mas não, a maneira cruel de tratar a tragédia desmascara uma verdadeira teratologia no enfrentamento da crise. Remeto-me ao imortal Candido Portinari, o poeta, no poema sobre a pintura Enterro:
“Quantos mortos vi passar! Vejo ainda
Os enterros dobrando a praça. Homens silenciosos e escuros, vindo das fazendas distantes.
Trazendo o caixão negro,
cansados do longo caminhar.
Meu cérebro se enchia de caixões pretos,
Assombrações. Pavor.
Alguém mais velho vinha
Fazer-me companhia.
Ao amanhecer o sol afugentava
Todos os medos.”
É uma perplexidade ver que a necessidade da vacina foi tratada com o mesmo desdém com que se negou o uso das máscaras, ou a necessidade do isolamento. Estabeleceu-se verdadeira guerra política sobre uma questão 100% técnica: a vacina é a única maneira de vencer o vírus. Ridículos 3.47% dos brasileiros foram vacinados até hoje. Desesperador! Desestimulante. Um dado chama a atenção ao compararmos o Brasil aos EUA. Com a derrota do Trump, o ídolo do Presidente brasileiro, o Presidente Biden, que assumiu, garantiu a vacinação de todos os norte-americanos até maio de 2021. Capacidade técnica nós temos de sobra, faltou decisão política.
Há tempos temos alertado sobre o sucateamento de questões cruciais. A falta de investimento na ciência é brutal. Nós poderíamos ter nossa própria vacina, temos excelência técnica para produzir uma vacina de primeira linha. A opção foi negar a gravidade da doença e nem sequer cuidamos de comprar vacinas. Uma obtusidade que vai resultar em milhares de mortes que poderiam ser evitadas.
A angústia dilacerante cresce entre os jovens produzindo uma geração de meninas e meninos perplexos pela total falta de planejamento. Com a falta do combate ao vírus, instala-se o caos na economia. A única maneira de enfrentar a crise na economia é exatamente vacinando a todos e derrotando o vírus. É falsa e canalha a inversão desses fatores, pregar a hipótese de esquentar a economia sem ter vencido a pandemia. Os milhares de mortos hão de assombrar a todos os que negam a urgência no trato da doença.
A responsabilidade primeira, claro, é dos governantes, especialmente do Presidente da República, mas todas as pessoas que ousaram afrontar as normas internacionais de combate ao vírus devem também ser responsabilizadas. Chega de conviver com esses propulsores da morte, com esses que, ao serem negacionistas, propagam o vírus de forma criminosa e indiscriminada. É necessário ter um rigor ético nas nossas escolhas, e saber que a cumplicidade deve ser renegada. Chega dessa convivência que absolve e incentiva a postura que cultua a morte e despreza a vida.
Os dados sobre o dia a dia de quem está à frente no combate a pandemia me comovem, e me fazem indagar até que ponto a hipocrisia vai dominar a narrativa desses necrófilos. Não somente os médicos, mas os enfermeiros, os responsáveis pela limpeza dos quartos e banheiros das UTIs, os que cuidam da segurança, aqueles que cuidam das roupas, dos lençóis, enfim, todos aqueles que estão fechados nos hospitais pela opção de querer salvar vidas, por acreditar na ciência. Enquanto covardes e irresponsáveis se portam como se não houvesse a doença, milhares de pessoas se privam do contato com a família, com os amigos, com qualquer vida social. E são esses os verdadeiros heróis que, de forma silenciosa e simbólica, abraçam não só os doentes, mas suas famílias, seus amigos, a todos nós, enfim, que entendemos e valorizamos esse sacrifício abissal.
Vivemos num jogo de máscaras. De um lado, um bando de covardes e hipócritas que se exibe acintosamente, de maneira irresponsável e sórdida, para afirmar um negacionismo criminoso; do outro, o silêncio responsável dos que se dedicam a salvar vidas, a minorar dores e, muitas vezes, a só lançar um olhar amigo, carinhoso, seja de esperança, seja de despedida. São nesses gestos solidários que eu deposito minha confiança em vencer a crise. Mais uma vez, reportando-me ao meu Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego:
“Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus existe!
Passar de mundo para mundo, de encarnação para encarnação, sempre na ilusão na ilusão que acarinho, sempre no erro que afaga.
A verdade nunca, a paragem nunca!
A união com Deus nunca!
Nunca inteiramente em paz, mas sempre um pouco dela, sempre o desejo dela.”
Sempre observo as pessoas pelo que chamo de “sentimento de mundo”. Quero ter ao meu lado quem tem o mesmo desejo de um país justo e solidário que eu tenho. Os que embruteceram a vida, desprezaram os valores éticos e humanistas, optaram por construir muros que segregam o que resta de humano nesses grupos merecem, nesse momento, um desprezo cívico. O ar que falta nas UTIs lotadas, o beijo que não se faz possível na despedida, a saudade do abraço, tudo representa a diferença entre nós e a barbárie.
Talvez nada me abale mais do que saber que muitos mortos pelo vírus têm como o último olhar de despedida, na hora final, não um pai, um filho, o seu amor, mas um médico, um enfermeiro. Na nossa cultura, o ritual da despedida faz parte de um acolhimento que nos ajuda a resistir, a continuar existindo. E a nós cabe continuar existindo com dignidade, apesar deles. Entrego-me para o velho Vinicius de Moraes, na sua Ausência:
“Deixa secar no meu rosto
Este pranto de amor que a presença desatou.
Deixa passar o desgosto
Esse gosto da ausência que me restou
Eu tinha feito da saudade
A minha amiga mais constante
E ela a cada instante
Me pedia pra esperar
E foi tudo que eu fiz
Te esperei tanto
Tão sozinha no meu canto
Tendo apenas o meu canto pra cantar
Por isso deixa que o meu pensamento
Ainda lembre um momento a saudade que eu vivi
A tua imagem fiel
Que hoje volta ao meu lado
E que eu sinto que perdi.”