A figura de Cristo segundo Oscar Wilde

Atualizado em 4 de novembro de 2015 às 20:08
Oscar Wilde (1854 - 1900)
Oscar Wilde (1854 – 1900)

As frases a seguir pertencem à obra “De Profundis”, nome dado à longa carta escrita por Wilde a seu amante, Lorde Alfred Douglas, durante o período em que esteve preso por homossexualidade.

Meu caro Mr. Wilde, durante o período que passou na prisão (em decorrência de seu relacionamento com Lorde Alfred Douglas), o senhor se voltou para a religião. O que o levou a procurar alento na figura de Cristo?

A própria personalidade de Cristo.

Como assim?

Ainda hoje, há para mim algo de quase inacreditável na ideia de que um jovem camponês da Galileia pudesse imaginar que seria capaz de carregar sobre os ombros o peso do mundo, de tudo o que já havia acontecido e de tudo o que ainda estava por acontecer – dos pecados de Nero, de César Bórgia e de Alexandre IV, dos sofrimentos de todos aqueles cujos nomes formam legiões; as nações oprimidas, as crianças operárias, os ladrões, os prisioneiros, os párias, os que permanecem calados diante da opressão e cujo silêncio só é ouvido por Deus…

Hmmm…

E, acima de tudo, que não apenas tivesse imaginado poder fazê-lo, mas que o conseguisse de tal forma que agora todos os que entram em contato com sua personalidade, mesmo que talvez não se inclinem diante do seu alter, nem se ajoelhem aos pés do seu sacerdote, descobrem que, de alguma maneira, a fealdade os abandonou e a beleza que existe no seu próprio sofrimento lhes foi revelada.

Aparentemente, Mr. Wilde, há uma apreciação estética em sua devoção a Cristo…

Nem em Ésquilo nem em Dante, aqueles austeros mestres da ternura, nem em Shakespeare, o mais humano de todos os grandes artistas, nem em toda a mitologia ou lendas celtas, há alguma coisa que, pela simplicidade do patético, aliado à grandiosidade do efeito trágico, possa igualar-se e até mesmo aproximar-se do último ato da Paixão de Cristo.

Como assim?

A ceia com seus companheiros, um dos quais já o havia traído por um punhado de moedas, a angústia no pequeno e silencioso jardim banhado pelo luar, o falso amigo que se aproxima dele a fim de trai-lo com um beijo, o outro que ainda acreditava nele, negando-o; sua absoluta solidão, a submissão total, a aceitação de tudo e, a par disso, cenas tais como a do sacerdote rasgando as suas vestes em um ataque de cólera, o magistrado pedindo água na vã esperança de limpar a nódoa de sangue inocente que fez dele uma figura escarlate da história; a cerimônia de coroação do sofrimento, uma das coisas mais belas já registradas na história da escrita, a crucificação do inocente diante dos olhos de sua mãe e do discípulo que ele amava; os soldados lançando os dados para saber com quem ficariam as suas roupas; a morte horrível, através da qual ele deu ao mundo seu mais eterno símbolo…

A figura de Cristo é de fato magnífica.

Mais magnífica ainda é a constatação de que a Vida produziu alguém que, surgindo entre as camadas inferiores e modestas, provou ser mais admirável do que a mãe de Perséfone ou do que o filho de Sêmele. Das oficinas de um carpenteiro de Nazaré surgiu uma personalidade infinitamente maior do que qualquer outra que já houvesse sido criada em mitos ou lendas, uma personalidade cujo destino – por estranhok que possa parecer – seria revelar ao mundo o significado místico do vinho e a verdadeira beleza dos lírios do campo, como jamais ninguém o havia feito.

E quanto à doutrina cristã? Quais são suas principais vantagens aos seus olhos?

Há uma interpretação específica da doutrina cristã que considero equivocada. Nela, não há a exigência de que vivamos para os outros como um objetivo definido e consciente. Quando ele nos diz: “Perdoa os teus inimigos” não está pensando no bem do inimigo, mas no nosso próprio bem, já que o amor é mais belo que o ódio. Mesmo quando disse ao jovem: “Venda tudo aquilo que possuis e distribui o dinheiro entre os pobres”, não era nos pobres que pensava mas na alma do jovem, que a riqueza estava destruindo.

Existe um pouquinho de sua própria experiência em suas palavras, Mr. Wilde?

Eu tive as minhas ilusões. Pensei que a vida seria uma comédia brilhante e que Lorde Alfred Douglas seria um dos seus amáveis protagonistas. Descobri que não passava de uma desagradável e chocante tragédia.

Como assim, Mr. Wilde?!

Eu fui um homem que se colocou em relação simbólica com a arte e a cultura do seu tempo. Poucos homens conseguiram atingir a posição a que cheguei ainda vivos. Em geral ela é percebida, muito tempo depois, pelo historiador – quando tanto o homem quanto a sua época desapareceram. Comigo foi diferente: eu percebi por mim mesmo e fiz com que os outros percebessem. Os deuses me concederam quase tudo: eu possuía o gênio, um nome, posição, agudeza intelectual, talento. Fiz da arte uma filosofia e da filosofia uma arte… Drama, novella, poema em prosa ou verso, diálogos fantásticos ou sutis, o que quer que eu tocasse tornava belo. Tratei a arte como a suprema realidade e a vida como uma mera ficção. Mas me deixei atrair por longos períodos de ócio. Divertia-me ser um flâneur, um dândi, um homem da moda. Cerquei-me de naturezas menores e de inteligências medíocres. Permiti que o prazer me dominasse e acabei caindo em terrível desgraça.

Eu sinto muito. Imagino que o senhor tenha se arrependido.

Lamentar as experiências vividas é uma forma de impedir o próprio desenvolvimento.

Voltemos à religião, Mr. Wilde. Qual é sua passagem predileta da Bíblia?

Quando trouxeram à sua presença alguém que havia sido apanhado no ato de pecar e lhe mostraram a sentença que ela havia recebido, perguntando-lhe o que deveria ser feito, Cristo disse: “quem aquele entre vós que jamais tenha pecado, atire a primeira pedra”. Valeu a pena ter vivido só para dizer tal frase.

Seria Maria Madalena a pecadora em questão?

Sim, e ela consiste em uma das figuras mais interessantes da Bíblia. Sua relação com Cristo é memorável. Ao vê-lo, Maria Madalena quebra o precioso vaso de Alabastro que havia recebido de um dos seus sete amantes e derramas as fragrâncias perfumadas sobre seus pés cansados, e graças àquele instante ganha um lugar no céu ao lado de Rute e de Beatriz.

O que mais chama a sua atenção na figura de Cristo?

É quando trata com o pecador que Cristo se revela mais romântico. O mundo sempre amou os santos por ver neles a coisa mais próxima à perfeição de Deus. Por algum divino instinto, Cristo parece ter amado o pecador poe ver nele a coisa mais próxima à perfeição do homem. Seu principal objetivo não era nem reformar as pessoas nem aliviar o sofrimento, ele não desejava transformar um ladrão interessante em um homem honesto e aborrecido.

O senhor se importaria em explicar a última frase?

De uma forma que o mundo ainda não chegou a entender, Cristo considerava o pecado e o sofrimento como sendo, por si mesmos, coisas belas e sagradas, como formas de perfeição.

Nesse caso, para Cristo, o pecador não deve se arrepender?

É claro que o pecador deve arrepender-se. Mas por quê? Simplesmente porque, de outra forma, ele não conseguiria entender o seu erro. O momento de arrependimento é o momento da iniciação. Mais do que isso: é o meio através do qual podemos alterar nosso passado. Os gregos não acreditavam nisso e muitas vezes afirmaram nos seus aforismos gnômicos: “Nem mesmo os deuses conseguem alterar o passado”, diziam. Mas Cristo provou que até o mais vulgar dos pecadores pode fazê-lo, sendo essa, na verdade, a única coisa que ele é capaz de fazer.

Não estou entendendo…

Pense da seguinte maneira: No instante em que o filho pródigo caiu de joelhos e chorou, ele transformou o fato de ter perdido todos os seus bens com as meretrizes, em um dos monumentos mais belos e sagrados da sua vida.

Mr. Wilde, o senhor há de convir que muitas atrocidades foram cometidas em nome da religião…

De fato, e a desgraça de Cristo é que não tenha surgido mais nenhum depois dele. Faço uma exceção: São Francisco de Assis. Mas a esse Deus dotou, no instante do nascimento, de uma alma de poeta e ele próprio, quando ainda bem jovem, tomou a pobreza por esposa em um casamento místico. Assim, possuindo, ao mesmo tempo, a alma de um poeta e o corpo de um mendigo, não lhe foi difícil trilhar o caminho da perfeição. Ele entendia Cristo e tornou-se igual a Ele.