Em uma matéria tendenciosa (“Policial Juliane teve seus últimos momentos com bebida, pegação e dança”), a Folha considerou importante contar a seu leitor o que a PM Juliane dos Santos Duarte estava fazendo quando foi morta no último dia 2 na favela de Paraisópolis, SP.
Se procurar direitinho, e com um pouquinho de cara de pau, sempre dá pra colocar a culpa na vítima.
Em resumo, Juliane foi assassinada em um bar depois de ouvir um relato sobre um celular furtado e bancar a PM heroína se identificando, puxando a pistola e dizendo que ninguém sairia dali se o aparelho não fosse devolvido.
Se você é policial militar em uma comunidade dominada pelo PCC, é grande a chance de que você morra se for identificada. E é isso. Mas a Folha se ateve aos pormenores:
Segundo testemunhas, a diversão começou por volta do meio dia, de quarta-feira (1), em um churrasco na casa de amigos em Paraisópolis (…), ali no bar, conheceu uma moça de 25 anos, cabelos vermelhos, com quem logo começou a trocar beijos.
E é daí pra pior: a Folha teve “acesso” até às últimas palavras de Juliane. Sabia quantas cervejas ela pretendia comprar. Buscou – e usou – cada uma dessas informações inúteis para confirmar aos seus leitores e comentaristas que, sim, a culpa é da vítima.
A Folha não só foi extremamente desonesta quando tentou imprimir na imagem da vítima a vadiagem e a promiscuidade como não teve o mínimo cuidado em investigar o gênero com o qual se identificava a vítima em questão, que se apresentava como homem trans, e não como mulher lésbica – e, lendo-a como lésbica, tratou de culpá-la.
A morte de Juliane não teve a ver com a ruiva que ela beijou, com as cervejas que ela comprou ou com o churrasco onde ela foi antes de ser executada, mas, para agradar ao sadismo de seus leitores, o jornal joga baixo.
Os comentaristas do jornal são uma espécie estranhamente interessante de ser humano.
Ratificam suas próprias convicções fascistas perdendo preciosos minutos com comentários vazios e raivosos, buscando confirmação por parte dos outros e brigando quando ela não vem.
Por exemplo: a Folha postou uma matéria sobre um padrasto que estuprou suas enteadas. Ali, no meio, como quem não quer nada, escreveu que a mãe conhecera o estuprador e casara com ele recentemente, mas “não havia informações se ela tinha ou não conhecimento dos abusos.”
Pronto.
Chuva de comentários como “cadê a mãe dessas crianças?” ou “mulher fica colocando macho dentro de casa, dá nisso!”
O discurso de culpabilização da vítima está sempre presente na velha mídia porque há uma demanda para que assim seja – é isso, afinal, que os leitores esperam.
Ninguém merece morrer por um erro de conduta, ou por beber e falar demais, ou por ser ingênua a ponto de, sendo PM, não se resguardar em uma favela dominada pelo PCC.
Aliás, enquanto policial militar, trans lida como mulher, para o “pessoal dos direitos humanos” – olá, eu mesma -, Juliane fazia parte, triplamente, de uma estatística de risco.
Agora, faz parte da triste estatística da morte – mulheres (ou qualquer ser humano lido como mulher) são, de um modo ou de outro, sempre estatística.