O artigo abaixo, de Renata Lins, foi publicado no blog Chopinho Feminino.
Os garis. No carnaval. Tão educativo isso. Os garis pararam no carnaval. Já tinham ameaçado parar no Ano Novo, outro ponto delicado em que se nota mais do que normalmente o quanto eles são necessários. Mas não, no dia 1° as ruas estavam limpas, as praias estavam penteadas e com a areia tinindo, esperando turistas e locais que não têm que trabalhar no sol a pino do dia 1°.
E parece que os garis, esses que trabalharam duro no dia 1° para que os frequentadores das praias e das calçadas cariocas pudessem se espalhar sem medo, ficaram até o meio da tarde sem o espartano lanche e suco a que têm direito.
Não saiu quase nada nos jornais sobre isso. Vivam as redes sociais.
Os garis pararam agora, no carnaval, numa jogada de mestre. O carnaval é, de fato, o momento de maior visibilidade para essa profissão invisível. Lembro do texto do menino da USP que, para fazer pesquisa de campo do seu trabalho sobre invisibilidade, foi trabalhar na limpeza da universidade. Pois bem. Nem seus colegas o reconheciam. Ninguém falava com ele. Não o reconheciam porque não o viam. O gari como árvore: faz parte da paisagem. Em silêncio, trabalhando de cabeça abaixada. Que faça seu serviço, que não atrapalhe quem estuda. Quem faz coisas sérias. Quem “faz por merecer”.
“Ah, não estudou!”
Que lindo o país da meritocracia. Mais que isso: que lindo o país que prescinde de garis. Porque, né, claro. Os outros países, aqueles lá do primeiro mundo – assim, beeem primeiro mundo, tipo a Escandinávia … então, esses países: não têm garis, né? Afinal, lá todo mundo estudou… ah, tem? Como é isso então? Sim, entendi. Os garis são, tipo assim, imprescindíveis. Fundamentais. Essenciais.
Estão na base da nossa sociedade de consumo desenfreado. Da nossa sociedade produtora de lixo.
Os garis. Negros garis. Loiros médicos “ricos e cultos”, que se insurgiram contra os negros médicos cubanos. Em Cuba, como em todo lugar, tem garis. Negros, possivelmente. Mas também tem médicos negros em quantidade: aí a diferença.
Trabalho insalubre. Trabalho pesado.
Trabalho que necessitaria de muito mais proteção do que eles têm, por conta da exposição a doenças. Por conta do contato direto com o lixo dos outros. O lixo que eu, que você, que todo mundo produz em quantidade. Feio, fétido. O lixo que a gente não quer ver, do qual a gente não quer saber. Pois é. Quem dá conta dele são os garis.
Mas o moço branco que estudou em boas universidades e paga de liberal (mas, descubro, é um reaça de quatro costados) acha errado pagar mais aos garis. Que afinal não estudaram. Porque, diz o moço, se pagarem mais, outras pessoas vão fazer o concurso e vão desempregar os que realmente precisam desse emprego.
Ah, tá. Porque se o salário de gari fosse, vamos dizer, não os R$1.200 que eles estão pleiteando, mas … digamos… R$6.000 reais, que já é um salário bem razoável… eu vou correr lá pra fazer concurso pra gari? Ele vai? Meu vizinho?
Ah, não? Pois é, amigo, não é só o salário… o trabalho é punk, é pesado, é desagradável, é sujo, é insalubre. É essencial. Justamente por isso é que quem o faz merece dignidade. Merece ser tratado com respeito. Merece um salário que lhe permita alimentar sua família. Comprar remédios. Ter um mínimo de tranquilidade. Ter, quem sabe – oh, transgressão das transgressões – momentos de lazer.
Imagina. O gari na praia, relaxando. O gari viajando de férias. O gari vivendo a vida que não é só trabalho com lixo. Que ousado. Que revolucionário.
Só que não.
Não é nem revolucionário. Nem ousado. Nem “de esquerda”. Isso pode ser a vida de um gari na sociedade capitalista. Numa sociedade capitalista um pouco menos selvagem do que a nossa. Um pouco menos escravocrata. Um pouco menos elitista. Um pouco menos racista.
Pode ser, e certamente é.
Mas aqui não.