A greve dos que, com fome, transportam comida

Atualizado em 3 de julho de 2020 às 0:01

Publicado originalmente no Vermelho

Os protestos dos trabalhadores com aplicativos que se espalharam pelo país na quarta-feira (1) mostraram uma das faces da cruel realidade formada com os retrocessos sociais nos governos pós-golpe de 2016. O Brasil pôde compreender melhor o que representa o paradigma neoliberal das relações de trabalho por meio das reivindicações de uma das categorias mais expostas à contaminação pelo coronavírus e pelo paradoxo de entregar comida batalhando duro para obter o pão de cada dia.

Na pauta de reivindicações da categoria constam questões previstas na Consolidação da Leis do Trabalho (CLT), como reivindicações de equipamentos de proteção individual – os chamados EPIs; alimentação durante a jornada de trabalho e licença remunerada em caso de adoecimento. Os entregadores também querem mudanças na política dos aplicativos, entre eles o fim do sistema de pontuação e o fim dos bloqueios e suspensões injustos.

Soma-se às condições precárias de trabalho a exposição a riscos elevados de acidentes e a total ausência de seguridade social. Algo que remete aos primórdios das relações de trabalho capitalistas, da imposição mais brutal da dominação do trabalho pelo capital. Com os retrocessos dos últimos anos, agora sob a denominação de neoliberalismo – com toda a coloração ideológica escravista que este termo encerra no Brasil –, o que se vê é a repetição daquela lógica.

Não é cabível ter como socialmente aceitável a volta desses resquícios da relação entre Casa Grande e Senzala. Esse modelo de relações de trabalho é uma anomalia que não cabe em nenhum projeto de desenvolvimento social e econômico. Com elas, não existe nenhuma chance para se gerar um Brasil melhor. São métodos que revelam o perfil da superexploração do trabalho por um modelo de reprodução do capital desregulamentada e precarizada.

Esse projeto, dominado pela simbiose entre superexploração do trabalho e parasitismo financeiro, prevê, deliberadamente, a existência de um exército de excluídos socialmente como forma de garantir grandes privilégios para poucos. O entreguismo neocolonial, o cerceamento dos canais de participação popular e das estruturas representativas do povo e o controle do Estado pelo capital financeiro são a base desse projeto.

Os protestos de quarta-feira expuseram tudo isso como uma fotografia que a um só tempo revelou o que o Brasil tem sido sob o projeto neoliberal e o que precisa ser. Eles enunciaram a crítica a tudo isso e alertaram para a importância da organização social como forma de enfrentar o domínio despótico do capital. Além, obviamente, de denunciar a escandalosa condição em que se encontram como trabalhadores de serviços essenciais, especialmente nesses tempos de pandemia.

Outro aspecto que merece ser destacado é a inovação na mobilização. Os entregadores, quase todos jovens, fizeram amplo uso das tecnologias, conectando-se nas redes com a mesma agilidade com que se movimentam pelas cidades de moto ou bicicleta. A manifestação causou até uma certa surpresa porque esperava-se que se restringisse apenas ao Rio de Janeiro e São Paulo, mas ocorreu em praticamente todos os estados.

Apoiá-los é um dever, um brado a favor de um projeto de sociedade voltado para a integração social, para a equalização de duas grandes necessidades: ser uma sociedade desenvolvimentista e humanista no trato das questões sociais. O Brasil sob o governo Bolsonaro está submetido a um chocante antagonismo social, com os ricos cada vez mais ricos, os pobres mais pobres e excluídos até da discussão sobre a exclusão social. Não dá mais. Basta.