Por Lenio Luiz Streck
No longínquo ano de 1893 um juiz foi condenado, pelo Superior Tribunal da Província do RS, pelo “crime de hermenêutica”. Na verdade, ele havia cumprido a Constituição e declarado, em controle difuso, a inconstitucionalidade de um dispositivo ordinário. Seu advogado, Rui Barbosa, criou a tese da vedação do crime de hermenêutica. E o STF “absolveu” o magistrado.
Desde então, há que se fazer uma distinção entre crime de hermenêutica e o uso da hermenêutica para fazer incitamentos de cometimento de crime(s).
Trago dois exemplos contemporâneos que se enquadram na segunda hipótese — a da hermenêutica usada para incitamento de cometimento de crimes, o que chamo de “hermenêutica do curupira”.
O primeiro exemplo é o “sentido” dado ao artigo 142 da Constituição. Graças a essa leitura de pés virados (jus curupira), milhares de radialistas (por que a maioria dos radialistas são reacionários?), operadores jurídicos (tem dez advogados presos por incitação ao golpe e participação nos atos criminosos do dia 8 J), militares, pessoas comuns, uma choldra de pastores que nunca passou perto de um curso de teologia reconhecido, e ex-jogadores de bingo (com alto grau de sarcasmos, digo: sou a favor da volta dos bingos e pela taxação dos smartfones) passaram a ter a convicção de a Constituição continha uma espécie de dispositivo auto implosivo, um “reset” institucional. Essa ideia lhes foi “vendida”. Como uma jus fakenews.
Quem colocou esse jus jabuti na árvore? Gentes do direito, jornalistas, “influencers” e militares fizeram uma leitura do tipo “todo o poder emana das forças armadas”. Tese tão absurda que o STF a chamou de terraplanismo jurídico (voto do ministro Barroso).
Talvez entre no Guiness essa leitura Humpty Dumpty-Curupira do artigo 142 da CF, pela qual as Forças Armadas seriam o “poder moderador”.
Há que ter uma responsabilidade ética na interpretação de textos. O que quero dizer é que, por vezes, fazer um certo tipo de hermenêutica pode ser um incitamento ao crime. Mesmo que o intérprete não queira. As pessoas (leia-se militares, ex-jogadores de bingo, advogados, médicos, dentistas, caminhoneiros, pastores, presbíteros, missionários, néscios em geral e políticos reacionários) podem acreditar que, de fato, as Forças Armadas são o poder moderador.
Por isso, juristas deveriam alertar, na bula — sim, Platão falava que a linguagem é como um Pharmacon —, que a sua interpretação pode causar efeitos colaterais como a invasão dos prédios dos três Poderes, como ocorreu no dia 8. Algo como a tarja das carteiras de cigarro: “o uso desta interpretação pode levar o usuário à prisão”.
Não se diga agora que os que difundiram essa interpretação enviesada do artigo 142 podem vir a “tirar o corpo fora”.
Há limites na interpretação de qualquer dispositivo. Se uma lei proíbe cães na plataforma, não se pode sair por aí dizendo que a lei permite que ursos passeiem lépidos pela plataforma. E crocodilos. E gorilas. E, da mesma forma, também não se pode proibir o cão-guia do cego.
Até o general Augusto Heleno se meteu de pato a ganso no ramo da hermenêutica. Só que comprou a tese curupira. Dezenas de vezes falou — e uso aqui, na especificidade, o que disse em agosto de 2021 em uma rádio e TV — que “o artigo 142 é bem claro, basta ler com imparcialidade. Ele existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado” (sic). À época denunciei isso. E avisei que os efeitos colaterais seriam terríveis. Mas poucos quiseram ler a bula.
Assim agindo, somando com os incentivos que o general dava no sentido de intervenção militar, há que se perguntar: por que o MP não interpelou o general?
O segundo exemplo de hermenêutica dos pés virados foi a de que a nova Lei de Defesa do Estado Democrático (14.197/2021) garantia a livre manifestação golpista, desde que pacífica. Vendeu-se no Brasil a tese de que “há um direito fundamental a defender golpe militar”. Bom, um juiz de MG chegou até a conceder mandado de segurança assegurando a um gaiato esse “direito fundamental”.
Nessa linha, até os comandantes militares entraram nessa patacoada anti-hermenêutica. Leiamos a lei: “não constitui crime […] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.
Ora, eis a pergunta de um milhão de “alamdossantos”: pedir, exigir e incitar golpe militar (em acampamentos e programas de rádio e TV) tem propósitos sociais? Percebem o fundo do poço em que nos metemos com interpretações curupira?
Uma coisa é certa: sustentar que o artigo 142 era um dispositivo de “resetamento” (sim, inventaram isso: o artigo 142 seria um dispositivo auto implosivo do sistema!!!) da democracia e apregoar que era livre expressão pedir intervenção militar são dois exemplos do que uma má hermenêutica pode provocar. Sim, fazem-se coisas com palavras. Porque muita gente acreditou. Basta ver o que ocorreu dia 8 de janeiro.
É o que chamo de “fator Navah”: dar existência a coisas que não existem! Uma mistura do velho testamento com John Austin (o linguista).
Quem colocou o Jabuti nos prédios dos três Poderes? Quem, quem?
Parte da culpa é de uma má hermenêutica. Por dolo ou culpa. A história há de mandar a conta. Virá sob a rubrica “irresponsabilidade hermenêutica”. Na coluna “hermenêutica sucupira”.
Post scriptum: para os jus haters!
Antes que apareçam os jus haters de sempre dizendo “ah, e o Alexandre de Morais? Não vai falar nada, professor? E sobre a ditadura do STF?”, eu me adianto e digo: poupem-me dessas jus pilhérias e jus nesciedades. E das currupirices antiargumentativas. Não fosse o STF e o TSE e nem estaríamos aqui debatendo o assunto. O golpe de Estado não ocorreu por pouco. Muito pouco.
Então, vamos lá: fatos existem. E paremos de ficar nas bolhas das neocavernas. E alguns já podem (devem) voltar aos bingos. Legalização dos bingos já! E pela volta da boa ironia. E do bom e velho sarcasmo.
Mais um detalhe: viva a OAB da Bahia, que está propondo que advogado que apoia intervenção militar deve ganhar automaticamente o certificado de “inidôneo”. Viva a Bahia.
Texto publicado originalmente no Consultor Jurídico