Por Katia Marko
“Aplicaram-me na veia uma droga qualquer, dizendo ser o soro da verdade. Senti o corpo entorpecido e não consegui manter os olhos abertos, mas a mente permanecia lúcida. Dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou estrangular-me e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. Colocavam-me completamente nua, de madrugada, no cimento molhado, quando a temperatura estava baixíssima. Petrópolis é intensamente fria na época em que lá estive. Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. Nesta época, Dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma, estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já fora condenada à morte, e que ele, Dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o “ódio” que sentia pelos terroristas. (…) Espancaram-me no rosto, até ficar desfigurada. A qualquer hora do dia ou da noite, sofria agressões físicas e morais. “Márcio” invadia minha cela para “examinar” meu ânus e verificar se “Camarão” havia praticado sodomia. Este mesmo “Márcio” obrigou-me a segurar em seu pênis enquanto se contorcia obscenamente. Durante este período fui estuprada duas vezes por Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros.”
O depoimento de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, foi registrado em 1971, e entregue à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 1979, quando foi libertada da prisão. Esse é um dos muitos relatos das 20 mil pessoas torturadas durante os Anos de Chumbo no Brasil.
Neste 31 de março de 2023, o golpe que implantou 21 anos de ditadura militar no Brasil completa 59 anos. Na verdade, ocorreu a 1º de abril. Mas como nesta data se celebra o Dia da Mentira, os militares recuaram a comemoração para 31 de março.
Nossa democracia ainda está na primeira infância e muito temos para avançar, principalmente nos direitos humanos e na igualdade social. Mas em nome dos que lutaram por nosso país não podemos aceitar qualquer tipo de tentativa de revisionismo histórico. A homenagem do ex-presidente Bolsonaro ao principal torturador da ditadura, o General Ustra, na fatídica votação de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, nunca mais pode se repetir. Como diz Eduardo Galeano, “a impunidade é filha da má memória. Sabiam disso todas as ditaduras de nossas terras…” Por isso, é preciso lembrar e relembrar.
E não só lembrar, como fazer Justiça! Importante a vitória, conforme divulgado no dia 28 de março, do Ministério Público Federal (MPF). Após recurso, a Justiça Federal reformou decisão que tinha absolvido o sargento reformado do Exército Antônio Waneir Pinheiro de Lima, o tal Camarão, que atuou na Casa da Morte. O sargento já havia se tornado réu por sequestro, cárcere privado e estupro da militante política Inês Etienne Romeu. No entanto, após a defesa do réu, a denúncia foi rejeitada e ele, absolvido, sob o fundamento de que os fatos apontados como crime estavam protegidos pela anistia e pela prescrição.
Na nova decisão, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) reconheceu que a conduta de Antônio Waneir não estaria abarcada pela Lei da Anistia (Lei 6.683/1979) e determinou que a ação penal contra ele retome seu curso. O acórdão reforça o entendimento de que o Brasil, por ser signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, deve seguir a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determinou que o país investigue e puna crimes contra a humanidade praticados pelos agentes estatais, não podendo considerar-se um obstáculo à investigação ou processo leis internas de anistia e prescrição, como é o caso dos autos.
Segundo o MPF, os crimes imputados ao militar foram comprovadamente cometidos contra Inês Etienne Romeu num contexto de ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira: “As torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados cometidos por agentes de Estado no âmbito da repressão política constituem graves violações a direitos humanos, para fins de incidência dos pontos resolutivos 3 e 9 da decisão, os quais excluem a validade de interpretações jurídicas que assegurem a impunidade de tais violações”, afirmou o órgão, mencionando sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund contra Brasil.
Que venha o filme “Brasil, 2023”!
A “verdade” que não pode calar
No dia 10 de dezembro de 2014, depois de dois anos e sete meses de trabalho, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) confirmou, em seu relatório final, 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país. Entre essas pessoas, 210 são desaparecidas.
Mais de 300 pessoas, entre militares, agentes do Estado e até mesmo ex-presidentes da República, foram responsabilizadas por essas ações ocorridas no período que compreendeu a investigação. O documento diz ainda que as violações registradas e comprovadas pela CNV foram resultantes “de ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro” e que a repressão ocorrida durante a ditadura foi usada como política de Estado “concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares”.
Esse número pode ser muito maior se levarmos em conta a extensão territorial do Brasil, a ausência de compilação estatística rigorosa, o número de pedidos de indenização, a inclusão recente de militantes, camponeses e operários na lista de desaparecidos e aqueles cujos familiares não deram queixa.
Em 1990, descobriu-se que no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, na capital paulista, havia uma vala clandestina com 1.049 ossadas sem identificação. Funcionários do cemitério informaram que o local era usado para enterrar indigentes, vítimas de epidemia de meningite e também da repressão política na época da ditadura. No dia 4 de setembro de 1990, a vala foi aberta para exumar os corpos. Após análise das ossadas, alguns desaparecidos políticos foram identificados. Mas ainda restam 1 mil corpos sem identificação.
Genocídio indígena
A Comissão Nacional da Verdade também incluiu em seu relatório final o assassinato de ao menos 8.350 indígenas em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Muitos sofreram tentativas de extermínio, como os Waimiri-Atroari (AM), massacrados entre os anos 1960 e 1980. Neste período, a terra indígena foi afetada pela abertura, construção e pavimentação da BR-174 (Transamazônica), pela obra da hidrelétrica de Balbina, e pela atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas que existiam no território.
“São mais de 8.500 mortos que permanecem sem direito a identidade pessoal e política, como se fossem pessoas de segunda categoria ou nem isso. É preciso ficar claro de que não são 434 vítimas, mas 8.934 ou mais. Todos têm nome, todos morreram por uma causa. Que causa defendiam os 8.500 nomes esquecidos?”, questionou Maiká Schwade que, junto com seu pai, o indigenista Egydio Schwade, realizou um vasto trabalho de pesquisa de violações nas décadas de 70 e 80 contra o povo Waimiri-Atroari, no Amazonas. Parte das apurações do Comitê serviu de base para o relatório da CNV.
O tal do fantasma do comunismo
Mas por que os militares, apoiados pelos EUA e empresários brasileiros, resolveram dar um golpe?
Segundo eles, para salvar o país do “comunismo”. Em nome da Tradição, Família e Propriedade, a Marcha pela Família reuniu 100 mil pessoas contra o governo de João Goulart, o Jango. Após a primeira tentativa de golpe, em 1961, quando Leonel Brizola criou a Rede da Legalidade, Jango sai fortalecido pela eleição de 1962, e reafirma a proposta das Reformas de base: agrária, urbana, bancária, educacional, tributária e política. Contava com apoio da parte mais expressiva e atuante do movimento sindical, das diversas alas do movimento camponês, movimento estudantil, a intelectualidade e de diversas forças políticas. A reforma agrária era o carro-chefe das Reformas de Base. Mas essas reformas contrariavam os interesses multinacionais e das oligarquias brasileiras. A tal da luta de classes.
Mesmo com toda a repressão, que endureceu com o Ato Institucional N.5, em 1968, a resistência se mantinha. No início dos anos 1970 apareceram uma série de movimentos sociais, com características diferentes, reivindicando espaço, criando polos de confronto que, aos poucos, rearticulavam as forças de oposição. O papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que, apoiadas pela Igreja Católica, surgem aos milhares no campo e na cidade foi fundamental. Por sua vez, os teólogos da libertação (cujas obras só começaram a aparecer no início dos anos 70) acharam mais fácil trazer suas teologias “de volta à terra” no quadro específico das CEBs, enquanto os pedagogos da Igreja, especialmente afinados com a linguagem da classe operária, desenvolviam técnicas de aplicação da exegese bíblica aos problemas sociais à sua volta.
A importância da comunicação popular
A comunicação popular no interior dos grupos de base foi decorrente de processos anteriores. Entre os anos 60/64, o Brasil viveu uma extraordinária experiência de cultura popular, através dos Centros de Cultura Popular (CCPs), do Movimento de Cultura Popular, etc. É também dessa época o Movimento de Educação de Base e o Método Paulo Freire. Todos esses movimentos, duramente reprimidos após 64, ressurgiram lentamente e com outras características após 1970. Então, muitos dos militantes dos movimentos da cultura e da educação popular dos anos 60 integraram-se na tarefa de trabalho de base. E passaram a trabalhar junto com a Igreja. O método Paulo Freire, por exemplo, foi amplamente utilizado pelas Comunidades Eclesiais de Base, através de discussões, da maneira de preparar as reuniões, do trabalho lento dos agentes pastorais, tirando os grupos do mutismo. Não se falava de Paulo Freire, cuja obra estava proibida, mas empregavam-se os seus métodos. Nessa fase, além das CEBs, a Igreja criou a Pastoral Operária, a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário e apoiou a criação de vários centros de documentação e educação popular em todo o país.
Em 1978, a situação social era uma panela de pressão prestes a explodir. Pequenos focos de resistência social manifestavam-se em quase todo o país. Na região industrial de São Bernardo (SP), a situação era crítica. Os operários haviam descoberto a manipulação dos índices de reajuste salarial através de falsos percentuais de aumento da inflação nos anos de 72, 73 e 74, quando Delfim Neto era ministro da Fazenda. Chamados pelas novas lideranças, os operários iniciaram mobilizações nas fábricas e no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, sob a direção de Lula, pela reposição salarial. Até que no dia 12 de maio de 1978 estourou a greve na Scania-Vabis e, em seguida, na Mercedes, Ford e em cerca de trezentas outras fábricas em alguns estados do Brasil. Naquele momento e apesar de todo o trabalho de formação dos operários que existiu nos anos de repressão, o movimento grevista e a mobilização pela reposição obedeciam mais a uma explosão humana do que efetivamente à consciência de classe dos operários.
“A história se repete? Ou só se repete como penitência para quem é incapaz de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi continua pulsando, vivo, dentro do tempo que é, ainda que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de lembrar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que nunca é necessário reivindicá-lo e pô-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita; não para que os vivos sejamos ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco perpétuo da estupidez e da desgraça, Quando está realmente viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la. Mais do que museus, onde a pobre se entendia, a memória está no ar que respiramos; e ela, no ar, nos respira.” Eduardo Galeano (Livro “De pernas pro ar, a escola do mundo ao avesso”)
Originalmente publicado em Brasil de Fato
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