A história dos índios treinados para reprimir índios pelo exército é um dos capítulos mais sinistros e menos conhecidos da ditadura. As chamadas GRINs, Guardas Rurais Indígenas, eram milícias responsáveis pelo policiamento em áreas de Goiás, Mato Grosso, Maranhão e Minas. Nos 50 anos do golpe, o DCM reproduz uma matéria publicada pelo Última Instância sobres as GRINs.
O Reformatório Agrícola Indígena Krenak e Fazenda Guarani, dois centros de detenção de índios criados nas décadas de 1960 e 1970, representam apenas um dos aspectos do modelo de vigiar e punir imposto às aldeias nos anos de chumbo da ditadura. Nessa mesma época, a Ajudância Minas-Bahia da Funai também iniciou o treinamento das GRINs (Guardas Rurais Indígenas), em parceria com a Polícia Militar mineira. Elas eram, basicamente, milícias armadas com revólveres e cassetetes, integradas exclusivamente por índios, e responsáveis por ações de policiamento nas áreas indígenas. Foram instaladas GRINs em Goiás, Mato Grosso, Maranhão e Minas Gerais.
A criação das Guardas foi amparada por uma portaria da Funai de setembro de 1969. Cabiam aos policiais indígenas prerrogativas como impedir invasões de terras, o ingresso de pessoas não autorizadas e a exploração criminosa dos recursos naturais nas áreas indígenas. Além disso, as Guardas também eram responsáveis por “manter a ordem interna”, coibir o uso de bebidas alcoólicas, “salvo nos hotéis destinados aos turistas”, e evitar que os índios abandonassem suas áreas para “praticar assaltos e pilhagens nas povoações e propriedades rurais próximas”.
Orgulho nacional
Em fevereiro de 1970, com pompa e cobertura de diversos órgãos de imprensa, foi realizada em Belo Horizonte a formatura das 80 primeiras GRINs. O evento teve como paraninfo o então ministro do Interior, José Costa Cavalcanti. Outras autoridades, como o governador de Minas Gerais Israel Pinheiro, e o ex-vice-presidente da República José Maria Alkmin, também estavam presentes.
Vestindo o uniforme oficial da Guarda, em patrióticos tons de verde e amarelo, índios de diversas etnias – gavião, kraho, karajá, maxacali e xerente – cantaram o hino nacional, juraram à bandeira e fizeram demonstrações das técnicas de judô aprendidas nos três meses de curso. Noções de armamento, defesa e ataque, moral e cívica e até mesmo higiene estavam, de acordo com reportagem publicada no jornal O Globo, entre os tópicos ministrados aos guardas indígenas.
Redescoberto somente no ano passado, o filme “Arara”, do documentarista Jesco von Puttkamer, traz imagens dessa cerimônia. Em determinado momento, desfilando em frente a autoridades, surgem dois índios, num ato de demonstração, carregando um homem no pau de arara – instrumento de tortura fartamente denunciado como um dos principais mecanismos empregados nos porões da ditadura militar brasileira.
“Até hoje nunca tínhamos encontrado uma cena de tortura dessa forma, em público”, disse Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais em São Paulo, em entrevista concedida à TV Folha. Zelic localizou as imagens pesquisando nos arquivos do Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
Espancamentos e violência cultural
Não demoraria muito para que as GRINs voltassem aos jornais, só que em circunstâncias menos festivas. Quatro meses depois da formatura de sua primeira turma, uma matéria do Estado de São Paulo relatou histórias escabrosas de espancamentos e arbitrariedades cometidos pelos índios-soldados na Ilha do Bananal, habitada pelos karajás.
Entre elas, a de um caboclo residente nas proximidades, acusado de vender bebida aos índios. Ele teria sido obrigado, em retaliação, a praticar orgias sexuais dentro da aldeia. A Guarda também teria tentado instituir no local uma casa de prostituição, com índias treinadas por uma companheira que exercia o ofício em uma fazenda. Dois dias depois, em uma nova reportagem do Estadão, os policiais responsáveis pelo treinamento da milícia atribuíram tais denúncias a uma campanha de desmoralização contra as GRINs.
Ao enxertar uma nova autoridade nas aldeias, completamente estranha às suas tradições, os mentores da Guarda Indígena acenderam um barril de pólvora no ambiente de conflitos internos envolvendo caciques, conselhos tribais e outras lideranças tradicionais.
“Foi uma experiência desastrosa, das mais infelizes, porque subverteu toda a ordem social do grupo”, testemunharia em 2002, num depoimento para uma revista eletrônica da Funai, o então chefe substituto do Departamento de Assuntos Fundiários, Alceu Cotia Mariz. “Elementos que eram escolhidos por critérios que nada tinham a ver com os critérios da organização social do grupo e já não respeitavam ninguém, não respeitavam os líderes. Ele mesmo se tornava um líder, imbuído de autoridade. Evidentemente, isso levou a uma violência interna crescente.”
Além disso, guardas de uma etnia eram colocados para vigiar outras tribos, acirrando conflitos étnicos históricos – foi o que ocorreu com os Avá-Canoeiros, policiados por Karajás. “Chegou-se ao desplante de criar as vilas GRINs nas reservas, com luz e água encanada”, completa João Geraldo Itatuitim Ruas, também ex-funcionário da Funai, descrevendo a segregação que se formava. “Naquela época, um GRIN ganhava 400 cruzeiros e a professora recebia 80.”
Apesar de negativas públicas sobre eventuais arbitrariedades, ofícios da própria Ajudância Minas-Bahia não deixam dúvidas de que o órgão tinha conhecimento sobre atitudes inaceitáveis. Eles descrevem diversas situações de guardas que foram encaminhados para períodos de “reenquadramento disciplinar” no Reformatório Krenak.
Casos como o do GRIN maxacali que, em maio de 71, foi acusado de forçar relações sexuais com uma índia casada, em avançado estado de gravidez, por meio de ameaças de prender seu marido. “Mediante tal ameaça, a índia acabou por aceitar e praticar a consumação do ato”, descreve relatório assinado pelo chefe de posto local.
Como penalização pelo estupro, o então chefe da Ajudância Minas Bahia, Capitão Manoel dos Santos Pinheiro, determinou a permanência do guarda por 30 dias no Reformatório Krenak – dez deles preso e, no restante do tempo, prestando serviços de vigilância. Ele continuou entre os quadros da Guarda Indígena.
Por mais estranho que pareça, alguns dos membros das GRINs foram recrutados diretamente entre os ex-internos do reformatório – mais precisamente, entre aqueles que eram considerados leais, trabalhadores e disciplinados. Para esses índios, sugerem ofícios da Funai, o desejo de se tornar policial remete a tal função ser vista como uma porta de saída para o confinamento. “O elemento está se recuperando dia a dia, tem trabalhado muito bem em todos os serviços braçais. Está ansioso para ser colocado na Guarda Rural Indígena”, escreve o chefe do Posto sobre um índio Fulni-ô lá chegado há 14 meses, sob acusação de vadiagem e uso de drogas.
“Eu gostava de ser policial, só que os índios não gostavam”
Na segunda metade da década de 1970, a estrutura das GRINs morreu de inanição: deixou de receber recursos e muitos dos seus membros foram incorporados ao corpo de servidores regulares da Funai.
Ainda hoje, em algumas comunidades, é possível encontrar ex-integrantes da milícia. E, mesmo entre eles, há sentimentos dúbios sobre a Guarda. “Eu gostava de ser policial, pois recebia as roupas e todos os materiais. Só que os índios não gostavam. Polícia não é cultura do índio, é do pessoal branco”, comenta o ex-GRIN Totó Maxacali, em sua casa na Aldeia Verde, município de Ladainha (MG), onde hoje ele vive, com dezenas de famílias da etnia.
Por incrível que pareça, para falar com ele preciso recorrer a um maxacali mais jovem, que faz às vezes de intérprete. Apesar dos meses de treinamento militar, e de ter jurado à bandeira em Belo Horizonte, Totó ainda mal consegue, 40 anos depois, se comunicar em português. “Imagina só a violência que foi pegar esse pessoal e levá-los para serem treinados como polícia repressiva?”, diz Geralda Chaves Soares, pesquisadora da história indígena em Minas Gerais. Ela viveu com os maxacalis na década de 1980, quando era integrante do Cimi (Conselho Indigenista Missionário).