Em 1988, Dom Pedro Casaldáliga foi interrogado no Vaticano por Joseph Ratzinger, então cardeal e prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que condenava os princípios ‘marxistas’ identificados na Teologia da Libertação.
O alemão queria saber mais da a luta de Dom Pedro em defesa dos pobres, dos negros e dos índios em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso.
Numa entrevista à Folha, anos mais tarde, Casaldáliga contou como foi o encontro — que virou filme em 2016, “Descalço sobre a terra vermelha”.
Dom Pedro Casaldáliga morreu neste sábado, dia 8, aos 92 anos. Ele estava internado em Batatais (SP). Tinha problemas respiratórios agravados pelo Mal de Parkinson.
Folha – O novo papa o interrogou?
D. Pedro Casaldáliga – Sim. Os interrogatórios foram com o cardeal Ratzinger e outros dois cardeais.
Folha – Como começou?
Casaldáliga – Eu me negava a fazer a visita a Roma que os bispos devem fazer a cada cinco anos. Eles reclamaram. Eu escrevi uma carta ao papa, explicando, e com muitas reivindicações, a respeito do sacerdócio, da participação da mulher… Passei por longo interrogatório.
Folha – O que perguntaram?
Casaldáliga – Sobre a Teologia da Libertação, sobre a Missa dos Quilombos, minhas visitas à Nicarágua, a liturgia…
Folha – Como era o clima?
Casaldáliga – Houve momentos de tensão e alguns momentos de humor. Devo reconhecer que Ratzinger é um intelectual. É um homem sério, de princípios. É retraído, não tem a projeção midiática de João Paulo 2º.
Folha – Como foi o comportamento dele? Estava calmo, sereno?
Casaldáliga – Eles perguntam e esperam a resposta. Retrucam. Eu me senti com bastante liberdade. Tive liberdade para falar. Depois, foi entregue ao papa o dossiê com todas as acusações. Eu fui chamado para conversar pessoalmente com o papa durante 15 minutos. Ele insistiu na unidade da igreja, reconheceu os problemas sociais do Brasil, sobretudo da nossa região, rezou pelos perseguidos…
Folha – No interrogatório, houve algum episódio curioso?
Casaldáliga – Um dos cardeais sugeriu que eu não falasse com os jornalistas. Não foi o Ratzinger. Eu disse que achava oportuno falar. “Se eu não conto o que tem acontecido aqui, os jornalistas vão ter que inventar”, disse. Como saíram notícias, novamente fui chamado. O mesmo cardeal perguntou quanto tempo eu tinha estado com o papa. Eu respondi: 15 minutos. “Foi tempo perdido”, disse ele. “Porque o sr. falou para os jornalistas e estão espalhando a notícia pelo mundo afora.” Eu fui enérgico. Estávamos um pouco tensos. Eu falei: “A igreja guarda segredo demais. Depois, os jornais têm que inventar…”
Folha – O sr. já conhecia o cardeal Ratzinger?
Casaldáliga – Só por referências. Sabíamos que era um homem duro, controlador. Como dizem alguns, um “cardeal de ferro”.
Folha – Ele levantou a voz, em algum momento?
Casaldáliga – Não. Ele levantava as palavras…
Folha – Por que o sr. se recusava a ir ao Vaticano?
Casaldáliga – Porque eu não concordava com o modo como os bispos eram recebidos. Não havia diálogo. Nós escutávamos, fazíamos uma foto, e ficava por isso… O que a gente pede é o intercâmbio, a comunicação.
Folha – Na sua ação, o que mais incomodou o cardeal Ratzinger?
Casaldáliga – Foram os compromissos sociais, a ida à Nicarágua e à América Central. Também o fato de inculturar a liturgia. Acharam que a missa dos quilombos transformava a missa num grito de um povo. Eu retruquei que a Igreja já havia feito missas para homenagear reis e príncipes. Muito mais direito tinha todo um povo massacrado. Toda uma cultura marginalizada. Celebramos a missa pela causa indígena. Podemos celebrar o sofrimento e a esperança do povo negro, dos povos indígenas. Eu falei para um cardeal africano, que estava ao lado de Ratzinger, que ele poderia entender a missa dos quilombos.
Folha – Ele concordou com o cardeal Ratzinger ou com o sr.?
Casaldáliga – Ele era juiz naquele tribunal. Não foi uma coisa feroz. Foi tenso, em alguns momentos, mas houve momentos de humor.
Folha – O sr. lembra de algum comentário bem-humorado do cardeal Ratzinger?
Casaldáliga – Ele me tinha perguntado porque eu falei na Nicarágua. Eu disse que era necessário revolucionar cada um de nós, revolucionar a igreja, revolucionar o mundo. Quando terminamos, eu falei: “Vamos rezar o Pai Nosso”. Ele perguntou, com certa ironia: “É para revolucionar a Igreja”? Eu falei: “Também. A igreja toda tem que mudar”.
Folha – Além do “silêncio obsequioso” houve outro constrangimento imposto pela congregação?
Casaldáliga – Quiseram que eu assinasse uma série de proposições, de compromissos. Me chegou esse documento com papel timbrado do Vaticano, mas sem assinatura. Sem que eu dissesse uma palavra, esse documento foi publicado. Eu me neguei, então, a firmar esse documento.
Folha – Qual é a sua esperança?
Casaldáliga – O reino de Deus continua. Passa bispo, passa papa, passa príncipe, passa rei. Nós devemos continuar nosso trabalho com muita esperança, relativizando o que é relativo. E não desanimar por nada.