A reunião de Bolsonaro com o embaixador de Israel, na Câmara dos Deputados, não teria acontecido se o anfitrião já estivesse preso ou pelo menos se sentisse sem cara e sem forças para aparições públicas.
Mas Bolsonaro anda por aí com desenvoltura e apareceu de terno e gravata para o encontro, dentro do Congresso, com suporte de gente da bancada de extrema direita. Foi assim que deu exposição cerimoniosa ao evento.
Bolsonaro e o embaixador afrontaram Lula, o governo, o Itamaraty, toda a diplomacia, o Ministério Público, o Judiciário, o Congresso, as instituições e o Brasil. Tudo com roteiro e liturgia e numa sala do Parlamento.
Uma afronta com um detalhe só aparentemente insignificante. Assessores e fotógrafos fizeram registros protocolares e foram retirados da sala, porque o resto ninguém poderia ver.
O Bolsonaro moribundo, que frequenta rodas de conversas, cultos e entrevistas, agora se encontra em reunião fechada no Congresso com o embaixador de um país empenhado em destruir um povo.
A afronta cumpre seu objetivo de desafiar a autoridade de Lula e também o de mostrar que Bolsonaro é um fora da lei avariado, mas ainda vivo e temeroso.
A diplomacia de guerra de Daniel Zohar Zonshine ajuda na sobrevida de Bolsonaro, que se oferece como escada para que Israel tente colocar o dedo na cara de Lula.
Podem dizer que não faz sentido, se Bolsonaro não tem mandato e foi derrotado em duas tentativas de se manter no governo, numa eleição seguida e num golpe tabajara.
Mas a reunião executa o plano de jogar para a torcida e mantê-la acordada, ao mesmo tempo em que Benjamin Netanyahu manda dizer que seu emissário conversa com Bolsonaro.
Foi uma troca. Israel contribui para a sensação de normalidade na vida de Bolsonaro, e o sujeito lhe ofereceu a vitrine para o desaforo. Netanyahu mandou dizer que Bolsonaro ainda tem poder interno e de interlocução internacional.
Como foi alcançado até agora apenas pela Justiça Eleitoral, Bolsonaro é o elefante que qualquer um enxerga como quiser, apalpando isoladamente a tromba, a orelha, a barriga, o Pix ou o rabo.
Não se tem ideia do conjunto e da sua utilidade política. O que Bolsonaro ainda é capaz de fazer? O sistema de Justiça ainda não o alcançou pelos crimes que cometeu. A inelegibilidade é um dano, mas ainda falta imobilizá-lo criminalmente.
Bolsonaro poderia estar morto politicamente, depois da eleição e da invasão de 8 de janeiro, se já tivesse sido submetido ao código penal, e não só ao código eleitoral.
A punição eleitoral é o que temos para as circunstâncias, porque a base para decisões mais drásticas é tão nebulosa quanto o poder real de Bolsonaro. Não há lastro na sociedade para que ele seja condenado e contido numa prisão.
Por isso combinaram a reunião. Para que uma autoridade estrangeira também dissesse que Bolsonaro vive e circula à vontade, cumprindo compromissos, com terno e gravata, com a diplomacia de um país mergulhado no sangue de crianças palestinas.
Duas expressões do que existe de pior no mundo hoje confraternizam, numa reunião que parece não ter sentido, pela só aparente impossibilidade de efeitos práticos imediatos.
O efeito é este: o embaixador decidiu dizer aqui, como andam dizendo em outros lugares, que Israel vai manter o massacre e pode manter por mais tempo os reféns brasileiros no sul de Gaza.
Judeus progressistas podem admitir que é constrangedor ver um embaixador de Israel sentado ao lado de uma figura que já tirou fotos com nazistas e tem parte do entorno e da base social com conexões comprovadas com essa gente.
Mas hoje nada mais constrange ninguém. A afronta está feita. O embaixador afrontou o presidente da República e as instituições brasileiras. E Bolsonaro apenas continuou afrontando o Ministério Público e o Judiciário.
Publicado originalmente em Blog do Moisés Mendes
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