Por Moisés Mendes
A Argentina leva como seu concorrente ao Oscar um filme com uma história que o Brasil nunca poderá contar. Não tivemos aqui dois heróis antifascismo como os promotores Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo.
Na metade dos anos 80, os dois levaram adiante as acusações contra os ditadores, que passaram a ser condenados com seus subordinados, para que nunca mais um general voltasse a assumir o poder, perseguir, torturar e matar.
O filme, ‘Argentina 1985’, com o insubstituível Ricardo Darin, é para ser visto com admiração e inveja. Os argentinos têm, na área judicial, episódios edificantes da luta contra a ditadura que podem ser transformados em arte.
Nós não temos nada semelhante. A anistia de 1979 nos tirou a chance da reparação, e todas as tentativas de reversão de impunidades foram frustradas.
A anistia equiparou militantes políticos a bandidos que agiam em nome do Estado e nos impediu até, por interpretação do Supremo, de condenar torturadores por crimes de lesa humanidade.
Os dois promotores do filme do diretor Santiago Mitre agiram porque a anistia estava revogada, tinham o suporte político do governo de Raúl Alfonsín e os militares eram trastes imprestáveis depois da tragédia da Guerra das Malvinas.
Em 1985, enquanto a Argentina julgava os militares, o Brasil encaminhava o que seria a transição para a normalidade com a eleição indireta de Tancredo Neves.
Os argentinos enfrentavam as sequelas do horror. Os brasileiros partiam para a acomodação e guardavam numa gaveta escura seu passado recente.
O resultado é que, enquanto não há na Argentina a chance de ver de novo generais com poder político, o Brasil gera como presidente, pelo voto, um tenente medíocre que tenta imitar generais e elogia torturadores.
Bolsonaro, seu entorno de generais e mais de 6 mil oficiais empregados no governo, seus vínculos com milicianos e sua submissão paga à direita do centrão para poder governar, é a prova de que não nos curamos.
O Brasil não purgou seus crimes, como fizeram argentinos, chilenos e uruguaios, em diferentes níveis. E permitiu que a memória dos criminosos fosse preservada e exaltada por seus adoradores.
Bolsonaro não é uma figura sem explicação. É o que o Brasil quis ser. Há na sua representação como líder, ou não teria sido eleito, desejos que o Brasil não reprimiu.
Um contingente importante dessa maioria o enxergou como a possiblidade de ter um “militar” eleito para encarar Lula, as esquerdas e o povo que andava de avião.
Bolsonaro só não deu certo porque, por ignorância política, passou dos limites e radicalizou o que não precisava ser radicalizado.
Mandá-lo embora é o mais decisivo, mas não é tudo. O país somente será pacificado se não repetir os erros dos anos 70 e 80 e não fugir das oportunidades de reparação e punição.
Não há como enquadrar criminalmente os torturadores, até porque quase todos estão mortos, mas é preciso enfrentar os crimes de quatro anos de bolsonarismo.
Todos os crimes. Os crimes da família, das facções da pandemia que vendiam vacinas, do gabinete do ódio, dos operadores do orçamento secreto, dos milicianos, dos pastores do MEC protegidos pelos pastores de Bolsonaro.
E também os crimes paralelos do entorno que o apoiou, do lado de fora e atuando também dentro do Planalto, com o financiamento e a disseminação dos planos golpistas sob investigação do Supremo.
Se o Brasil passar pano de novo, para acomodar arranjos e evitar enfrentamentos, por acovardamento ou por interesses políticos pequenos, não teremos nunca nada parecido com o que os argentinos têm para contar.
É a hora da ação institucional. Que comece pelo Ministério Público, como fizeram Strassera e Ocampo.
Os promotores não foram heróis avulsos e desconectados de um contexto inseguro e ainda conturbado, mas protagonistas de um sistema de Justiça e de um ambiente social e político que os acolheram para que seguissem em frente.
Chega de acomodação com criminosos comuns. Para que possamos dizer com segurança: outro Bolsonaro, nunca mais.
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A MÃE QUE AMAVA O GENERAL
Julio Strassera morreu em 2015. Luis Moreno Ocampo tem 69 anos e é jurista com atuação internacional na área dos direitos humanos. É dele esse depoimento em entrevista recente ao jornal La Tercera, do Chile:
“Sempre uso o exemplo da minha mãe. Meu avô era general e minha mãe me disse que amava o general Rafael Videla. Ela disse que era como seu pai. Ela foi à igreja com Videla no bairro de Olivos. E eu nunca poderia convencê-la. Até que começou o julgamento das juntas militares. Uma semana depois, nossa primeira vítima foi uma professora universitária que foi sequestrada quando estava grávida e teve seu bebê no banco de trás de uma viatura com as mãos algemadas. Sua filhinha caiu no chão do carro e passou cinco horas no chão, chorando. Uma coisa tremenda. Fizeram a professora limpar o carro antes de sair. No dia seguinte, minha mãe me ligou no telefone e me disse: eu ainda amo o general Videla, mas você tem razão, ele deveria ir para a cadeia. Eu precisava convencer os juízes e minha mãe”.
Texto originalmente publicado em BLOG DO MOISÉS MENDES