Um jornalista britânico pergunta, no Independent, se haveria a mesma comoção se o atentado contra o Charlie Hebdo tivesse como alvo uma publicação de extrema direita.
Respondo com uma pergunta.
Alguém consegue imaginar uma marcha, no Brasil, que congregue pessoas emocionalmente arrasadas que segurem cartazes que digam: “Sou a Veja?” Ou mesmo: “Sou a Globo?” Ou ainda: “Sou a Folha?”
Ou indo para pessoas físicas. Feche os olhos e veja multidões com cartazes assim: “Eu sou Jabor”. Ou: “Eu sou Merval”. Ou: “Eu sou Reinaldo Azevedo”. Ou: “Eu sou Sheherazade”.
A direita tem poder e dinheiro, mas não comove ninguém. Não muito tempo atrás, festas nas ruas celebraram na Inglaterra a morte de Margaret Thatcher.
Testemunhei uma delas, em Trafalgar Square, berço da majestosa coluna de Nelson, o almirante que impôs a primeira grande derrota à França de Napoleão.
As grandes empresas de jornalismo do Brasil e seus porta-vozes – os reais chapas brancas da mídia — são o exato oposto do Charlie. Defendem um mundo de privilégios que provocava vômitos mentais nos cartunistas mortos.
Isso não tem impedido a mídia brasileira de usar a tragédia do Charlie, cinicamente, em causa própria.
O sangue dos cartunistas franceses vem sendo utilizado sobretudo para barrar a discussão em torno da regulação da mídia no Brasil.
A liberdade de expressão pela qual morreram os jornalistas do Charlie seria, aspas, e pausa para uma gargalhada, ameaçada pela regulação.
Já que falamos de Nelson, evoquemos também Wellington, o herói inglês de Waterloo: quem acredita nisso acredita em tudo.
A “liberdade de expressão” pela qual se batem as empresas jornalísticas brasileiras pode ser resumida assim: vale tudo para defender os próprios privilégios.
Você pode assassinar reputações sem prova e sem consequências jurídicas. Você pode usar concessões públicas como rádios e tevês como arma de propaganda contra ideias e pessoas que representam ameaças, reais ou imaginárias, às mamatas. Você pode concentrar o direito à opinião em quatro ou cinco famílias. Você pode formar monopólio impunemente.
Você pode tudo, em suma – e sem contrapartida. Numa disputa com dois barões da mídia na década de 1930, o então premiê britânico Stanley Baldwin produziu uma frase ainda hoje amplamente citada no Reino Unido.
Depois de dizer que os jornais de ambos eram na realidade “máquinas de propaganda” para servir a interesses pessoais, e não públicos, Baldwin afirmou: “O que os donos desses jornais querem é poder, mas poder sem responsabilidade, coisa que no correr dos tempos tem sido o atributo das marafonas.”
De Baldwin para cá, a opinião pública inglesa esteve constantemente vigilante em relação aos barões da mídia.
O último deles, Rupert Murdoch, virou um pária social depois que os ingleses souberam os métodos que um jornal seu empregava para obter furos.
Sob a fúria da opinião pública, Murdoch foi obrigado a fechar o jornal, e jamais voltou a ter um vestígio do poder e da influência que tivera na Inglaterra.
Ainda em consequência do escândalo, a Inglaterra se pôs a discutir, prontamente, uma nova regulação da mídia. Os detalhes finais estão sendo elaborados, mas essencialmente foi decretado o fim da auto-regulação por ter se provado pateticamente ineficaz.
No Brasil, não chegamos ainda, neste terreno, aos anos 1930 de Baldwin.
Que presidente brasileiro ousou dizer a barões – e à sociedade, principalmente — as verdades que Baldwin disse?
Diversos ocupantes do Planalto não apenas silenciam como patrocinam os barões com o Bolsa Imprensa, o dinheiro público farto e constante que sempre abastece as grandes empresas na forma de publicidade federal.
É esse estado de coisas que a mídia está defendendo mais uma vez, com o caso do Charlie – e não, não e ainda não a “liberdade de expressão”.