Dois casos de julgamento apressado — e como isso não ajuda o leitor.
Um dia após este Diário reforçar seu compromisso com o jornalismo de qualidade e com uma sociedade mais justa, a Folha de S. Paulo traz em seu caderno Cotidiano (pág. C7) um perfeito retrato da ausência dos tais compromissos.
Na referida página temos, lado a lado, primeiramente uma foto desacompanhada de qualquer matéria, solta na imensidão, com uma curta e enigmática legenda; depois, como vizinha, a notícia de aceitação de denúncia de homicídio doloso no já famoso caso do Porsche.
Onde a falta de compromisso? Nos dois casos. Vamos ao primeiro.
O que se vê na fotografia é um grupo de manifestantes rodeando uma jovem deitada no chão simulando morte. Abaixo, a legenda:
“FEMINISTAS: Protesto em frente a escritório de advocacia na Av. Faria Lima; estagiária morreu dias após relatar suposto estupro em festa da empresa; polícia investiga o caso”.
Ponto. Nada mais. A única informação esclarecedora ali é o nome da avenida o que, a meu ver, é de nenhuma relevância. Para quem sabe do que se trata, a história está mal contada. Desde o final do ano passado que o suicídio da estagiária de direito Viviane Alves Guimarães Wahbe está cercado de mistério e sufocado num clima de abafa.
Por que o jornal publica uma legenda tão hermética, descumprindo premissas básicas (quem, quando, onde, porque)? Há algo mais que deveríamos saber e não podemos? Por que o jornal fomenta nossa pulga atrás da orelha acerca de um acordo com a tal “empresa”?
Pulemos para o segundo exemplo.
“Juíza aceita denúncia de homicídio doloso contra motorista de Porsche”.
Este é o título, tudo completinho, texto esclarecedor (quem, quando, onde, tudo nos conformes) sobre um caso já famoso que o jornal, contrariamente ao que faz com relação ao primeiro exemplo, vem acompanhando desde o início, atualizando o leitor com frequência. Onde está a erro?
Vamos lá. Desde o início, lá em 2011, o engenheiro Marcelo Malvio de Lima é simplesmente o “motorista do Porsche”. Desde a noite do acidente, o jornal (e a mídia em geral), divulga o fato carregando no preconceito. Desde o primeiro dia, o engenheiro já estava julgado e condenado pela mídia. Um playboy a bordo do carrão, a 116 km/h, matou uma advogada. Fim de papo.
O quanto isso não está pesando na caneta da juíza? Mesmo após a confirmação de que a advogada Carolina Menezes Cintra Santos estava embriagada e cruzou no sinal vermelho, a preocupação com a opinião pública pode estar influenciando. Não tenho dúvidas.
Quem provocou o acidente? Quem atravessou o sinal ou quem estava a quase o dobro da velocidade permitida? Quanto a isso sim, tenho enormes dúvidas e me espanta que a juíza aceite a denúncia de que houve intenção de matar por parte de um deles apenas.
O leitor do DCM é crítico e inteligente e a esta altura já deve estar matutando: “Mas isso não contradiz o primeiro exemplo? O playboy rico e poderoso poderia ter entrado em acordo com o jornal e abafar a situação”. Mais ou menos, leitor, mais ou menos. Apesar do contraste de poder entre o veículos (um caríssimo Porsche contra uma ordinária Tucson), entre seus motoristas a coisa se inverte. Carolina Santos é de família tradicional da Bahia, sobrinha-neta do ex-governador Roberto Santos.
Ou seja, poderíamos concluir que alguns poderosos são mais poderosos que os outros e que o playboy perdeu. Mas não é esse o ponto.
Prefiro reforçar que, no primeiro exemplo a mídia está acovardada e mancomunada, quebrando o compromisso de transparência. No segundo caso, a mídia já havia condenado previamente um dos envolvidos, rompendo o compromisso com a justiça e imparcialidade.
O DCM não faz, nem nunca fará isso. Ainda que tenha havido algumas vozes discordantes (o que é ótimo), tudo o que os colunistas deste Diário dissertaram acerca da tragédia de Santa Maria não foi prematuro nem leviano e está sendo confirmado pelo restante da mídia agora, três dias depois. Não por sermos videntes ou paranormais. Apenas por obedecermos o bom senso de parar, analisar e escrever. Sem especulações nem sensacionalismos.
A mídia com a postura exemplificada acima faz com que a impunidade adquira essas distorções. Pela pressa em julgar. Isso facilita que os bodes expiatórios sejam os primeiros e únicos a pagarem o pato.
Fazer jornalismo não é atirar dardos e “tentar” acertar o alvo o mais rápido possível. Se errarmos, podemos ferir alguém.