O participante de um Survivor francês teve ataque cardíaco e o médico do programa se matou por causa das críticas à maneira como lidou com o caso.
Passa-se numa ilha da Tailândia, chamada Koh-Lanta, o programa de mesmo nome que vai ao ar pela TF1 francesa. É a versão do “Survivor” ou equivalente ao nosso “No Limite”.
Particularmente, acho esse gênero de reality show mais palatável do que o BBB. Ainda que haja críticas em relação ao sadismo da atração, nenhum concorrente foi sequestrado e levado vendado ao programa. Todos sabem previamente o que irão enfrentar e candidatam-se para aquilo mesmo.
Provas de orientação geográfica e de resistência física são realizadas em ambientes, se não selvagens, bem mais inóspitos do que em uma mansão cenográfica no Projac. Poderia ser ainda mais desafiador e inteligente em vez de submeter os participantes a comer olho de peixe ou insetos vivos. São brincadeiras até simples demais para a contrapartida financeira da premiação.
Ainda assim, acredito que seja uma gincana legítima, verdadeira e atrativa. Algo muito mais digno da definição “jogo” do que a incompreensível e etérea lógica da competição disputada embaixo de edredons.
A morte de um participante da competição, Gérald Babin, 25 anos, há pouco mais de dez dias, é lamentável, mas do jogo. Babin teve um ataque cardíaco. Não, não estou dizendo que este tipo de morbidez seja desejável. Mas quem entrou ali sabia do risco. Até jogadores de futebol morrem em campo em função do esforço. Normal.
Nesta segunda-feira, sob fogo cerrado desde a morte de Babin, o médico do programa, Thierry Costa, suicidou-se. Em sua carta de despedida alegou estar sendo injustamente responsabilizado e afirmou ser essa a razão principal de seu ato.
Até aí… normal. Não irei discorrer sobre suicídio, leiam o artigo de Paulo Nogueira sobre Clo Orozco.
E não, essa atitude também não é desejável nem normal num programa de TV. Não estou sendo indiferente ao ocorrido nem ao sofrimento da vítima, apenas entendo como uma consequência compreensível na cadeia dos acontecimentos: prova de risco/morte/culpado/suicídio. Normal.
No entanto, há um trecho na carta deixada por Thierry Costa, que muito me intriga. Ele escreveu, em autodefesa: “Nos últimos dias, meu nome foi maculado na mídia… Estou seguro de que tratei Gérald de maneira respeitável, como um paciente, não como um participante“.
Opa!
Nada mais de normalidade a partir de agora. Como assim uma coisa ou outra? Pacientes ou participantes? Há ordens para que um participante, quando enfermo ou acidentado, não seja tratado como paciente?
Para um médico, essa distinção não pode existir. Quando escalado para acompanhar um evento em que o risco é um dos ingredientes, ele deve abstrair essa condição. O médico não tem nada a ver com a morbidez do espetáculo nem da platéia. Não está lá para julgar.
Quer dizer que na Fórmula 1 poderemos algum dia ter um socorrista que declare, após um acidente fatal: “Puxa, bem que tentei, afinal eu o tratei como paciente e não como um piloto que anda a 300 km/h e, portanto, sabia do risco que estava correndo”.
Pilotos, repórteres de guerra, policiais, motoboys, são todas categorias que poderiam receber esse tratamento condicionado, afinal são “participantes” da reality vida. É isso?
As duas mortes estão em investigação e a frase do médico, penso, deveria ser a linha condutora. Se há orientação, mesmo que extraoficial, da direção do programa para que o socorro proceda de maneira leviana, houve crime. Agora é aguardar a seriedade dos franceses na apuração das denúncias de que o médico teve sua atuação retardada propositalmente ou que foi vetado o uso de helicóptero e que a tentativa de se chegar a um hospital tenha sido feita em barco por mera economia.
A morte faz parte da vida e alguma coisa que se proponha “realidade” pode, em determinado momento, precisar enfrentá-la. O que ainda não descobrimos é como matar os reality shows. Esses programas são execrados por dez entre dez pessoas, entretanto a audiência e a receita publicitária são sempre o argumento para a próxima edição. É daqueles enigmas indecifráveis do mundo. Já reparou que nunca encontramos ninguém que tenha votado naquele deputado desmiolado que bate recorde de votos?