A normalização de absurdos é o princípio da morte das democracias. Por Kennedy Alencar

Atualizado em 19 de julho de 2019 às 11:27
População sai em defesa da democracia (NURPHOTO VIA GETTY IMAGES)

PUBLICADO NO BLOG DO KENNEDY

POR KENNEDY ALENCAR

Normalizar absurdos é como as democracias morrem. Isso se tornou comum no Brasil, especialmente sob o governo Bolsonaro, o que coloca, sim, a nossa democracia em risco.

Instituições estão sob ataque constante. A demonização da política, que tanto mal fez ao país nos últimos anos, especialmente com o impacto da Lava Jato sobre a opinião pública e um impeachment tabajara, começa a se estender a jornalistas e veículos de imprensa. Ironicamente, jornalistas têm a sua parcela de responsabilidade nesse processo e deveriam fazer um mea culpa para entender como foi possível chegar ao ponto em que chegamos.

Dois episódios recentes ilustram bem esse método de constante tentativa de dinamitar a credibilidade da imprensa, abrindo caminhos para tentações autoritárias do presidente Jair Bolsonaro e ministros.

Nesta semana, a jornalista Miriam Leitão e o cientista político Sergio Abranches foram impedidos de participar da Feira do Livro de Jaraguá do Sul (SC) devido a um ato de intolerância política.

Os promotores da feira, que receberam um abaixo-assinado de cerca de 3 mil pessoas contrariadas com a presença dos dois escritores, desconvidaram Miriam e Abranches. Ocorreu evidente autocensura dos organizadores sob a justificativa de dificuldade para garantir a segurança de ambos.

Na semana passada, na Flip (Festa Literária de Parati), rojões foram direcionados ao público que queria ouvir o jornalista Glenn Greenwald. Um grupo pequeno, entre 15 e 20 pessoas, de acordo com relatos da imprensa, estava furioso com as revelações do “Intercept Brasil” a respeito do modus operandi de estrelas da Lava Jato, como o ex-juiz e hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador da República Deltan Dallagnol. Gente poderia ter sido ferida por esses fogos de artifício. Isso não é manifestação democrática.

Os episódios que envolveram Miriam, Abranches e Greenwald são absurdos e inaceitáveis numa democracia plena.

No período entre 2013 e 2018, cresceu a intolerância no debate público brasileiro. Em 2019, com um novo governo, esse preocupante processo continua em marcha. O presidente Bolsonaro estimula a intolerância no país.

No livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, há uma reflexão sobre o bombardeio de líderes populistas a jornalistas e veículos de imprensa. Autocratas e demagogos “atacam seus críticos com termos ásperos e provocativos”, escreveram Levitsky e Ziblatt. Segundo os dois, disseminar na sociedade a ideia de que jornalistas mentem torna “mais fácil justificar ações empreendidas contra eles”.

Quando Bolsonaro diz que as críticas da imprensa à decisão de nomear o filho embaixador nos EUA mostram que ele está fazendo a coisa certa, o presidente da República busca minar a credibilidade do jornalismo. É absurdo.

Quando um ministro da Justiça usa a força do seu cargo para tentar intimidar jornalistas, como tem ocorrido em relação a Greenwald e veículos que publicaram reportagens com base nas mensagens trocadas no Telegram por Moro, Dallagnol e cia, há risco para a democracia.

Nesta quinta, mais uma reportagem da “Folha de S.Paulo” baseada no arquivo do “Intercept Brasil” mostrou que Moro cruzou os limites da lei quando o Ministério Público negociava acordos de delação premiada.

Tornou-se um hábito do ministro da Justiça usar as redes sociais para lançar dúvida sobre a autenticidade de conversas averiguadas por jornalistas e veículos de imprensa com condutas editoriais corretíssimas. Contraditoriamente, Moro também fala em violação de segredo. Ele também gosta de dar lições a editores de jornais, rádios e TVs sobre o que devem publicar. É um comportamento absurdo. Revela intolerância à crítica e temperamento autoritário.

Nas redes sociais, o presidente e seus filhos políticos atacam jornalistas e veículos de imprensa com frequência. Eduardo e Carlos Bolsonaro são mais ativos do que Flávio nesse sentido. Carlos posta as mensagens mais agressivas num português de difícil compreensão, mas suficiente para animar um claque de extremistas de direita nas redes sociais. É absurdo o comportamento dos filhos do presidente da República.

Mas o pai é o pior exemplo. Recentemente, Bolsonaro chamou o ex-deputado federal Jean Wyllys de “menina”. Foi um ataque homofóbico e misógino do presidente da República. Poucos dias antes, o Supremo Tribunal Federal havia tornado a homofobia equivalente ao crime de racismo.

Nesta quinta, em cerimônia no Palácio do Planalto, Bolsonaro fez piada sem graça, mas homofóbica, sobre ser amigo do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), apesar de ele estar usando uma gravata cor de rosa. A gente sabe quem é Bolsonaro, mas um presidente da República precisa medir melhor o peso das suas palavras. Num país homofóbico, ele dá um péssimo exemplo que passa como folclore de “tio do pavê”. Ele foi “polêmico”. Aliás, chamar absurdos de polêmicas é como as democracias morrem.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, divulgou nota na quarta-feira em defesa da Lava Jato. Respondia a pressões da força-tarefa de Curitiba para comentar as revelações feitas por diversos jornalistas e veículos de imprensa que consultaram o arquivo do “Intercept Brasil”. Ora, a Lava Jato não está em questão. Há suspeitas a respeito de condutas individuais de Moro como juiz e de Dallagnol como procurador da República. A PGR (Procuradoria Geral da República) tem poderes correcionais. Por obrigação, deveria apurar o conteúdo de reportagens de interesse público.

Mas a atitude de Dodge foi passar a mão na cabeça de figuras menores como “Delta” e “Robito” (os procuradores da República Deltan Dallagnol e Roberson Pozzobon), que queriam ganhar muito dinheiro industrializando palestras com a fama que ganharam na Lava Jato. Quando uma autoridade que deve investigar abusos está mais preocupada com uma eventual recondução ao cargo, a democracia se enfraquece. É um absurdo que se normaliza.

Nesse triste contexto, é dever do jornalismo não normalizar tais absurdos. Ninguém é obrigado a concordar com Miriam Leitão, Sergio Abranches e Glenn Greenwald, profissionais sérios e respeitados, ou com qualquer outro jornalista ou cientista político. Mas tentar calar vozes dissonantes e intimidar a liberdade de imprensa são inadmissíveis. Não é normal chamar uma rede de TV de “lixo” o tempo todo nas redes sociais, em campanhas com suspeita de uso de robôs para disseminar postagens ofensivas.

É preciso ter força para lutar contra a normalização dessas atitudes absurdas. Que a imprensa não se engane. Ela é um dos alvos principais desses demagogos e autocratas que chegaram ao poder no Brasil.

Ouça no áudio abaixo o comentário que fiz na quarta-feira no “Jornal da CBN – 2ª Edição”. Muitos entenderam minha fala como um desabafo. Não se tratou disso. Foi um comentário de quem tem couro grosso para enfrentar autoritários e difamadores profissionais que desejam transformar nosso país numa república de bananas. Mas o Brasil merece ser uma democracia plena. E vou lutar por isso com todas as minhas forças enquanto for jornalista.

Por razões de ordem pessoal, não consegui publicar antes no blog o comentário realizado na quarta nem participar do jornal de ontem, quinta.

O áudio pode ser escutado neste link.