Publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur)
POR LENIO LUIZ STRECK, doutor em Direito (UFSC), pós-doutor em Direito (FDUL), professor titular da Unisinos e Unesa, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional, ex-procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e advogado
“É inadmissível que o Estado, para reprimir um crime, por mais grave que seja, se transforme, ele mesmo, em um agente violador de direitos fundamentais”. (…) “A investigação, acusação e punição de crimes em situação alguma podem se confundir com uma cruzada moral ou se transformar num instrumento de perseguição de qualquer natureza.” Nota da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – órgão do MPF.
A expressão “cruzada moral” usada na nota da epígrafe emitida por membros do MPF me fez viajar de volta alguns anos, para o interessante livro de Kwame Appiah, O Código de Honra, em que mostra como algumas práticas envergonhantes foram abandonadas a partir do constrangimento que causavam. O constrangimento é uma arma poderosa. Por isso é que criei um verbete chamado constrangimento epistemológico no meu Dicionário de Hermenêutica.
Explicando o Código de Honra de Appiah: durante mais de mil anos os pés das meninas chinesas eram atados, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados, em torno de 7,5 centímetros. A prática durou mais de mil anos e acabou em rápidos 20. Appiah pesquisou e descobriu que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o repudiavam. Isso constrangeu enormemente os chineses. E foi decisivo.
Assim também ocorreu com os duelos na Inglaterra. Se a prática de atar os pés era vergonhosa, a dos duelos passou a ser vista como ridícula e patética. E ambas acabaram. Ele diz também que, no Brasil, a escravidão no início era normal, depois, num curto período ficou “menos normal” e, em seguida, algo abjeto, a ponto de netos não entenderem como seus avôs foram capazes de escravizar. No século XIX, um funcionário chamado Kang consegue convencer o establishment chinês de que a prática de atar os pés era, além de todos os males, ridícula e envergonhante. E o fez comparando outros povos que não amarravam pés.
Talvez no Brasil as péssimas práticas de não levarmos a sério a Constituição possa um dia ser revertida porque ela — essa prática — envergonha-nos (ou deveria envergonhar-nos!) e, porque, para outros povos, soa como ridícula. E isso deverá nos causar constrangimentos de tal monta que abandonaremos essa prática. Quem sabe? Quem sabe abandonamos as “cruzadas morais” e nos voltemos ao Direito?
Prego há anos que essa “prática de substituir o direito pela moral” deve ser enfrentada. Cruzadas morais são abomináveis. Deveria envergonhar-nos a justificação da tese de que os fins justificam os meios. Essa tese é uma vergonha para o Direito.
Sim, deveria envergonhar a todos o fato de que juristas, jornalistas e jornaleiros justificam as práticas de Dallagnol e de Moro depois que estes acabaram com o princípio da imparcialidade judicial.
Deveria envergonhar a comunidade jurídica um Procurador fazer blague com o fato de estar ganhando tantos “k” (em um momento, já tinha ganho, em alguns meses, mais de 200 ks- líquidos, confessou) ministrando palestras conseguidas graças à fama da Lava Jato. Também deveria envergonhar a todos o fato de Moro postar no twitter que tudo o que estão dizendo dele e de Dallagnol são bobagens (sic) e que nada de anormal ocorreu.
Deveria envergonhar-nos o fato de um procurador pedir dinheiro público (R$ 38 mil) para uma campanha publicitária a ser feita por uma empresa privada. Também deveria envergonhar-nos o fato de o juiz dizer que sim, esse valor era possível. E a campanha foi ao ar. Quem pagou, não se sabe.
Deveria causar vergonha a todos os utentes o fato de um Procurador “convocar” reunião com o juiz e delegado para planejar operações. Tudo combinado-conjuminado.
Deveria envergonhar-nos o fato de um juiz sugerir ao MP o tipo de prova que deveria produzir. Ou avisá-lo acerca do fim do prazo processual. E a procuradora responder “que esqueceu da prova”, mas, avisada por Moro e Dallagnol… Enfim, deveria causar vergonha o fato de se justificar esses fatos como sendo normais (sic), como se no restante do país juízes e membros do MP se comportassem desse modo conjumínico. Remeto o leitor, de novo, à nota do PFDC do MPF citada na epígrafe.
Deveria envergonhar a todos os juristas um procurador da república se transformar em bandeirinha do juiz, fazendo bajulações que envergonham a Instituição do Ministério Público. Pior: deveria envergonhar-nos o fato de a Procuradora Geral da República, em vez de investigar a conjuminância, fazer nota de apoio, comprometendo a história institucional do MP. Assim, agindo, Raquel Dodge fez a opção pelo fator “The Dark Side of The Law”. Os duelos continuam e os pés continuam a ser atados, se me permitem a analogia. E não causam constrangimentos.
Isso tudo está dentro de um contexto, no qual o homo juridicuspindoramensis trocou o Direito pela moral e pela política. O homo juridicusbateu panelas e ganhou um Bombril. Falta agora terminarem com o exame de ordem e dispensar a fiscalização da OAB. Gol de mão? Vale… e não vale. Se for a favor do nosso time, grande juiz. Se for contra, deve ser esfolado. Direito? Ah, pra que direito? – “Não me venha com garantias”. Até um famoso sociólogo do Direito escreveu – é reincidente, porque é a segunda vez que o faz – que as formalidades processuais são nefastas ao Direito. Isso deveria envergonhar-nos, certo?
Vivemos uma espécie de tenentismo jurídico e isso deveria envergonhar-nos, porque estamos canibalizando aquilo que foi feito para nos proteger. Cruzadas morais são tenentistas, diria Werneck Viana.
Tudo é velho e nada aprendemos. No Império, a Constituição abolira em 1824 a pena de açoites. O Código de 1830 instituiu açoites. E o Código valeu mais do que a Constituição. Novidade? Qual é a diferença para hoje? Nem mesmo os códigos cumprimos. Isso deveria nos envergonhar, pois não?
Por isso, minha insistência e minha luta contra as práticas predatórias do direito, do mesmo modo que o funcionário Kang denunciava a prática dos pés atados na China. Raquel Dodge poderia ter acabado com a prática, porém resolveu continuar duelando. Peço, pela enésima vez: vamos estudar Direito. E que o respeitemos. Para isso, proponho uma hermenêutica ortomolecular, para expulsar os “radicais livres” da “livre interpretação”, “do moralismo” e “do subjetivismo”.
Vamos resistir? A democracia está se esvaindo… Em nome do Direito, estamos acabando com o próprio Direito. O Direito se canibalizou.
De novo: nada disso é gerado espontaneamente. Ninguém é filho de chocadeira. Quando, logo depois de 88, os professores acharam que “agora o juiz boca da lei está morto” e “chegou a vez do juiz dos princípios”, a derrocada começou. Quando o primeiro professor de cursinho inventou o resumo do resumo e depois veio outro professor com resumão facilitadão e quejandos e quejandinhos, iniciamos a descida. Quando os concursos foram transformados em quiz shows, quando a OAB terceirizou o exame de ordem, Tribunais, Ministérios Públicos etc., apostaram no modelo decoreba e ninguém fez nada, a “conquista” se consolidou.
E quando a doutrina começou a fazer apenas glosas de julgados e um Ministro disse “não me importa o que diz a doutrina”, a derrota já estava anunciada. A última torre caíra. Predadores exógenos e endógenos, atacando por meio de ponderações, neoconstitucionalismos, realismos retrôs… completa(ra)m o dramático quadro.
Noutra frente, quando o primeiro advogado, humilhado, não reclamou da negativa de transcrição na ata do julgamento do ato autoritário do juiz, quando a doutrina ficou silente em face dos descumprimentos das leis e da Constituição e quando a comunidade jurídica se transformou em torcedora, admitindo quebra da legalidade por interesses próprios e apoiando cruzadas morais, já não havia possibilidade de retorno.
Mas havia ainda uma pequena resistência. Lutávamos. “- Não tá morto quem peleia, dizia uma ovelha no meio de dez cães famintos”, metáfora aplicável aos teimosos que, como eu, acredita(va)m no Direito. Só que, então, vieram as revelações da relação conjumínica entre juiz e acusação na Operação Lava Jato. Era o que faltava para a derrota suprema do Direito. Eles venceram e o sinal se fechou. Dito de outro modo, os pezinhos das chinesas, os duelos… constrangeram… porém, os diálogos do Intercept, não. Eis o busílis.
No direito brasileiro, continuamos a atar os pés e a duelar. E até escravizar, se me entendem a metáfora.
Portanto, falta termos vergonha das iniquidades e assumirmos que ninguém está acima da lei. E que só a Constituição salva. Nem Moro, nem Dallagnol, nem ninguém está acima da lei. E que, sem imparcialidade, a justiça morre.
Por isso, só nos salvaremos se tivermos vergonha. Só a vergonha redime. Só a CF salva, recado que – acho – agora até deverá ser bem compreendido por Flávio Bolsonaro, quem, se antes berrava contra o STF, agora, com a recente decisão do Ministro Toffoli, viu e percebeu, finalmente, o quanto as garantias são importantes…! Nada como um dia após o outro!
O que ensinaremos nas faculdades? Que tudo isso é normal? Será possível fazer isso sem que nos envergonhemos?
Será que — lembrando O Código de Honra — se envergonharmo-nos do que está ocorrendo, poderemos mudar esse quadro em alguns anos? Ou vamos ficar de pés atados, se me entendem a alegoria?
Como palavra final, meus cumprimentos à PFDC do MPF… por saber envergonhar-se!
E reconheço que as razões para a crise do Direito e da Política são, obviamente, mais complexas. Neste curto espaço hebdomadário, considerei os pontos que mais explicitam a fragilização da Constituição e do conjunto de garantias. Afinal, a Constituição deveria constituir-a-ação dos juristas. No mínimo deles.