A partir de uma casa e uma empregada, “Roma” retrata um país que podia ser o Brasil. Por Tiago Barbosa

Atualizado em 28 de dezembro de 2018 às 6:15
Roma (Foto: Divulgação)

POR TIAGO BARBOSA

O filme Roma, dirigido por Alfonso Cuarón e disponível na Netflix, é um meio intrigante para decifrar a sociedade a partir da vida doméstica.

A casa não é só espaço de convivência da família: ela explica o país.

Reflete a arquitetura das relações entre gêneros e classes, o peso do afeto na construção da identidade, o papel do dinheiro na determinação do cotidiano.

E o cenário extraído das memórias do diretor é de um México dos anos 1970 em ebulição política, vulnerável à influência dos EUA, marcado por desigualdade sócio-econômica, machismo generalizado e opressão da população indígena nativa por uma elite branca.

É, aliás, um retrato compatível com tantos outros países da América Latina, como o Brasil, cuja colonização predatória expropriou riquezas, legou nichos de privilégios e produziu miséria em escala massiva.

Cuarón desbota esses desequilíbrios no preto e branco, recurso associado tanto às lembranças quanto à ausência de vida – embora proporcione uma intensa experiência sensorial em sons e imagens.

A trama é puxada pelo dia a dia de Cléo (Yalitza Aparício), empregada doméstica de uma família rica de Colonia Roma, bairro onde o diretor viveu e inspiração para o título do filme.

Mas o protagonismo é nitidamente repartido com a casa, eixo de rotação da família – os movimentos da câmera na residência, por exemplo, captam mais o ambiente e menos os personagens -, centro nervoso dos conflitos.

Cuarón expõe essas fissuras sem perder a ternura. No plano doméstico, a empregada respira a rotina dos patrões, mas tem a condição de subalterna constantemente lembrada.

A desumanização faz parte do processo. 

Ela vê televisão com a família, mas senta no chão. Dorme no terreno dos patrões, mas em um quarto nos fundos e separado da casa.

É provida de comida, mas tem o uso da luz controlado enquanto a família celebra a compra do – caro – carro novo. Fala ao telefone, mas limpa o aparelho antes de a patroa utilizar.

A distinção é embalada em gestos de carinho e de acolhida – a receita sentimental para esconder a exploração e gerar a falsa sensação de pertencimento, a ponto de ela valorizar mais a vida dos patrões e menos a da própria família.

A sensibilidade da direção também capta a complexidade dessa barreira, quebrada por dramas indiferentes a classes sociais, como o abandono masculino.

E o filme sabe abordar tanto a recorrência do problema através das gerações quanto a união feminina para peitar violências de uma sociedade patriarcal.

As mulheres são retratadas como destemidas e resilientes, capazes de suprir a ausência paterna, contornar riscos e enfrentar fraturas urbanas – materializadas pelo deficitário sistema de saúde e pela alusão ao massacre de Corpus Christi (1971), carnificina estudantil patrocinada por forças treinadas pelos EUA.

A narrativa do filme é pouco convencional e se limita a sucessão de acontecimentos sem clímax ou reviravoltas. É proposital e sugere a naturalização dos acontecimentos – por mais dolorosos, desesperadores ou ridículos, como atesta a mediocridade da elite manifestada na aquisição de um carro (quase) maior que a garagem.

Indicado a três categorias do Globo de Ouro e cotado para o Oscar, Roma faz um profundo mergulho nas memórias do diretor Alfonso Cuarón.

E emerge como retrato sentimental, humano e sensível das contradições atemporais do México e da América Latina.

Essa região cujas veias – a realidade comprova – não param de sangrar.