A foto das vítimas do desabamento da ciclovia no Rio de Janeiro estiradas na areia da praia enquanto uma turma joga futebol normalmente provocou indignação na internet. Sobraram nas redes sociais adjetivos como “desumanos”, “insensíveis” e “surreal”.
O Padre Fábio de Mello, ao comentar o fato no Twitter, inseriu todo mundo no pacote de brutalidade: “Na ciclovia que cai estamos todos menos humanos.”
A principal questão desta história, contudo, não é a cena de insensibilidade captada pelo fotógrafo Felipe Dana e sim por que algumas pessoas banalizam a morte a ponto de dois cadáveres não inibirem a diversão na areia da praia.
Tico Santa Cruz foi um dos poucos a tocar nesse assunto. No Facebook, ele escreveu:
“Tem algo sobre essa foto dos jovens jogando altinha próximo dos corpos das vítimas da ciclovia no Rio de Janeiro, que chocou a internet, que não foi dito. Esse pedaço da praia é bastante frequentado por moradores da Favela da Rocinha e do Vidigal. Comunidades onde durante muitos anos e até bem pouco tempo atrás, a violência, o descaso do poder público, as mortes provocadas pela guerra às Drogas que deixavam vítimas espalhadas por todos os lados, banalizou corpos pelo chão. A violência no Rio de Janeiro vai tornando os corações mais duros, indiferentes”.
O cenário de violência e ausência de políticas públicas descrito por Santa Cruz é comum a inúmeras periferias brasileiras, seja nas pequenas ou grandes cidades. São locais onde homicídios à luz do dia fazem parte da rotina.
Quando acontece um assassinato nas ruas, a multidão curiosa sai de casa para ver o corpo da vítima. Crianças, muitas delas bebês de colo, não são preservadas nesse espetáculo grotesco e crescem vendo a violência literalmente bater à porta.
Em um final de semana, uma criança de um reduto violento pode ver mais cadáveres do que um morador de bairro de classe média verá durante toda a vida.
No país com o maior número absoluto de homicídios no planeta, a indiferença dos jovens na praia diante de dois homens mortos é apenas um dos possíveis efeitos colaterais da violência no imaginário daqueles que são expostos a ela diariamente.
Pior que o futebolzinho ao lado dos mortos é a inépcia das autoridades de segurança pública em tentar compreender esses efeitos.
Em vez de pesquisar até que ponto a exposição a ambientes violentos colabora para reprodução de comportamentos agressivos, limitam-se a focar em investimentos palpáveis como contratação de policiais e aquisição de equipamentos e viaturas.
Até porque posar de xerife é uma forma de eficaz de conquistar postos mais altos na administração pública. Um exemplo notório é o conspirador geral da nação, Michel Temer, que estreou na vida política com titular da pasta de Segurança pública no estado de São Paulo.
Para quem prioriza a própria carreira em vez do interesse público, não faz sentido gastar dinheiro com pesquisas para entender a cabeça dos jovens da periferia, pois elas não rendem contratos milionários com a indústria bélica e nem boas fotos em cerimônias de inauguração ou entrega de equipamentos.
Para piorar, investigar as raízes da violência só produz resultados ao longo dos anos, inúteis para quem trabalha em benefício apenas do próprio projeto de poder.