Publicado originalmente no site Brasil de Fato
POR PEDRO RAFAEL VILELA
A data era 13 de junho de 2013, uma quinta-feira. Manifestantes do Movimento Passe Livre (MPL) marchavam pelas ruas do centro de São Paulo para protestar contra o aumento de 20 centavos na tarifa do transporte público da maior cidade da América do Sul. A passeata reunia centenas de pessoas, mas não chegava a ser uma multidão.
Mesmo completamente pacífico, o protesto foi duramente reprimido pela Polícia Militar de São Paulo (PM-SP), com uso indiscriminado de bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha. A violência da polícia nestia dia, que resultou em 150 feridos, desencadearia, na semanas seguintes, uma histórica onda de manifestações em todo o país, que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho de 2013.
Estima-se que, neste dia da manifestação do MPL, a PM-SP que tenham efetuado milhares de disparos de bala de borracha. Um deles atingiu em cheio o olho esquerdo do fotógrafo Sergio Silva, que cobria o protesto. Desesperado e sangrando, Sergio saiu zanzando pelas ruas da cidade e só conseguiu atendimento médico horas depois de ser atingido. Nenhum socorro foi prestado pelos agentes de segurança. Sergio acabou perdendo completamente a visão do olho esquerdo.
“Desde então, minha vida se transformou radicalmente. Primeiro, porque tive que parar de trabalhar, meu trabalho foi silenciado por um certo tempo. Não consegui mais trabalhar como fotógrafo na rua. Fui aprender a utilizar o equipamento fotográfico de outra maneira, como cinegrafista por exemplo, e no ambiente interno. Em segundo lugar, é o trauma que fica. Eu demorei mais de um ano para conseguir ir novamente numa manifestação, numa reunião democrática”, relata Sergio Silva ao Brasil de Fato.
Justiça cega?
O fotógrafo teve que contar com apoio de amigos, familiares e a solidariedade de dezenas de outras pessoas para conseguir se reerguer e enfrentar o que estaria por vir. Depois do episódio, ele entrou com um pedido de indenização contra o Estado, que foi negado em uma decisão extremamente preocupante: o juiz Olavo Zampol Júnior, da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo.
Além de não reconhecer a culpa do Estado, ele afirmou que o responsável pelo ferimento seria o próprio Sérgio, pois “ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), apesar de afastar o entendimento que a culpa era exclusivamente de Sérgio, negou o pedido de indenização, alegando não haver provas de que o ferimento havia sido causado pela polícia. O problema é que a decisão em primeira instância havia negado à defesa de Sérgio a possibilidade de apresentar e produzir as provas, cuja ausência serviu de justificativa para o TJ-SP indeferir a reparação. Após ter todos os seus recursos esgotados em primeira e segunda instâncias e também no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a defesa de Sergio tenta agora obter do Supremo Tribunal Federal (STF) o direito de seu caso se novamente analisado.
“A nossa expectativa é tentar sensibilizar a Suprema corte, para que esse caso possa ser conhecido. A gente pede uma afetação junto a uma repercussão geral do caso do Alex, que 10 anos antes do Sergio perdeu a vista em um episódio muito similar”, afirma o advogado Maurício Vasques. Em 18 de maio de 2000, o fotojornalista Alex Silveira também foi atingido no olho esquerdo por um tiro de bala de borracha enquanto fotografava o protesto de Sindicato dos Professores de São Paulo (APEOESP), na capital paulista.
Alex chegou a obter o direito de receber uma indenização do estado de São Paulo em primeira instância, mas em 2014 o TJ-SP reverteu a decisão sob o mesmo argumento utilizado no caso de Sérgio Silva – o de que o comunicador seria responsável pelo seu grave ferimento por estar exercendo sua profissão ao cobrir o protesto.
A prática de atirar na altura da cabeça com bala de borracha é proibida, mas virou uma epidemia na América do Sul. O caso do Chile é um dos mais emblemáticos, especialmente durante a recente onda de protestos em Santiago, em que mais de 200 pessoas foram atingidas os olhos por forças de segurança pública do país.
Na última terça-feira (10), Dia Internacional dos Direitos Humanos, integrantes de organizações da sociedade civil realizaram um ato em frente ao STF. “O Sergio Silva vem há seis anos tendo todas as portas da Justiça brasileira sendo fechadas e negada a ele. E a verdade isso diz muito do nosso sistema de Justiça, que há muitos anos vem legitimando todos os ataques e violações aos comunicadores e comunicadoras no país. A gente vive um cenário em que muitos comunicadores, muitos profissionais do jornalismo são frontalmente atacados. Ao negar o reconhecimento e a reparação ao Sergio Silva, o Estado brasileiro e o sistema de justiça estão legitimando todo esse cenário de violações a comunicadores e comunicadoras no Brasil”, afirma a advogada Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da ARTIGO 19.
Uso da força
Outra questão central associada ao caso de Sergio Silva, e de muitos outros, inclusive a recente ação da polícia na favela de Paraisópolis, em São Paulo, que resultou na morte de nove jovens, é o uso desmedido da força para contenção de protestos ou eventos públicos. “O caso do Sergio evidencia como as polícias brasileiras utilizam armamento menos letal de forma desproporcional, de forma desnecessária, desrespeitando todos os protocolos nacionais e internacionais do uso da força”, afirma Camila Marques.
Mesmo diante da dor de perder metade da visão, Sergio transformou seu caso em uma bandeira de luta. “Esse não reconhecimento que o Estado faz, perante essa situação, se torna também meu combustível para que eu lute para que isso não passe de maneira impune”, afirma.
O fotógrafo chegou a conseguir um abaixo-assinado com centenas de milhares de assinaturas para tentar proibir o uso de bala de borracha no estado de São Paulo. “A gente teve um sucesso parcial durante um tempo, São Paulo chegou a proibir, mas aprovaram de novo. O uso indiscriminado e sem controle desse tipo de equipamento e as ações atabalhoadas e muitas vezes virulentas e desmedidas das forças do Estado, não só vitimando civis, jornalistas, em última instância violentando irremediavelmente a nossa democracia”, afirma o advogado Maurício Vasques.