A pseudo ignorância de Bolsonaro é, na realidade, anúncio de golpe. Por Carlos Roberto Siqueira Castro

Atualizado em 16 de maio de 2020 às 10:17
Jair Bolsonaro. Foto: ludovic MARIN / AFP

 

O grupo palaciano procura atribuir o destempero verbal do Presidente com a visão, ultra tolerante e otimista, de que o chefe da nação não sabe se expressar. O problema é que as coisas que o Bolsonaro diz significam exatamente aquilo que ele quis dizer. Ao proclamar que chegou ao “limite da paciência”, que “não tolerará mais interferência” e que “tem as Forças Armadas ao seu lado”, em recado claro para o STF e o Congresso, está anunciando manobras reativas com índole de ruptura institucional.

Tudo faz parte do presidencialismo de autocombustão que pratica. A vitimização que procura construir para si próprio não é inocente nem fruto de paródias. É estratégica. É ameaça ao sistema de “freios e contrapesos” que inspira a separação de poderes e o funcionamento das instituições democráticas. Em suma: é anúncio de golpe. Não se trata, aqui, da conspiração pueril das “forças ocultas”, que estava na raiz golpista e tresloucada de Jânio Quadros. No atual contexto, a verborragia golpista, amplificada nas redes sociais pelas milícias digitais, fustiga instituições insuspeitas com nome e sobrenome: o STF, o Congresso, a imprensa livre, a OAB, os governadores, os expoentes da cultura nacional e todos que protagonizam a força viva da democracia.

Ao dizer que “eu sou a Constituição”, o Presidente se põe acima da Constituição e arvora-se em intérprete derradeiro da carta política de 1988 que restaurou o regime democrático, os direitos humanos e o rechaço à tortura depois de 25 anos de brutal autoritarismo. Sua biografia política nada tem a ver com a redemocratização do país, tampouco com a Constituição democrática que a implementou. Muito pelo contrário. O Presidente, os parlamentares, os membros do Poder Judiciário e ocupantes dos altos cargos públicos juraram cumprir a Constituição, o que não poderia ser de outro modo. Mas, a guarda final e definitiva da Constituição, por decisão do poder constituinte que a promulgou, incumbe ao Supremo Tribunal Federal e a ninguém mais. Daí a advertência, sempre lúcida, do Ministro Celso de Mello, decano do STF: “o Presidente pode muito, mas não pode tudo”.

Não é raro na história política das nações as tentativas do Executivo de capturar, segundo suas conveniências e apetite de poder, o sentido e o alcance das normas constitucionais. Até mesmo para restringir a atuação da Suprema Corte e ampliar o número de seus juízes com o propósito de angariar a maioria dos que exercem a jurisdição constitucional. Fizemos isso no Brasil. O ato institucional nº 2, editado pelo regime militar em 1965, elevou de 11 para 16 o número de vagas no Supremo Tribunal Federal, na tentativa de realinhar a jurisprudência da Corte e validar os atos de arbítrio praticados pelo regime militar.

Nos Estados Unidos, embora em contexto completamente diverso, ao tempo em que a Suprema Corte americana invalidou cerca de 200 textos legislativos que implementavam a regulação da economia na política do New Deal do presidente Franklin Roosevelt, este propôs ao Congresso em 1937 o que se chamou de “Court-curbing Plan”, com o objetivo de ampliar o número de juízes e permitir a formação de uma maioria de julgadores favoráveis às políticas de governo, chamados “pro-New Deal Justices”.

Apenas esses dois exemplos mostram que não são de hoje as investidas contra as cortes constitucionais quando estas contrariam as políticas de governo. É certo que o controle de constitucionalidade das leis e das ações do Poder executivo envolve uma atuação contra majoritária, uma vez que os parlamentares e o Presidente da República são eleitos em sufrágio universal e representam a maioria dos eleitores, enquanto os juízes das cortes constitucionais são designados por diferentes critérios de investidura, mas sem o beneplácito das urnas. Isto cria, a um primeiro exame, um déficit de legitimidade para aqueles aos quais incumbe garantir a supremacia da constituição.

Quando a Suprema Corte declara a inconstitucionalidade de um ato de governo, ela exerce o controle não a favor da maioria política prevalente, mas contra ela. Mas, fossem os juízes constitucionais eleitos pelo povo e sujeitos à disputa política e ao apoiamento partidário, não teriam por certo a isenção mais respeitável e própria dos intérpretes finais da constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo em nome da nação. A Teoria Constitucional é sábia

. Como sustenta, em obra clássica do constitucionalismo norte-americano, Alexander Bickel (The least Dangerous Branch), o Judiciário é o menos “perigoso” dentre os poderes do Estado. Não possui a espada (poder militar) nem vontade própria, pois só atua mediante provocação dos jurisdicionados. Bem por isso, as vocações tirânicas não aceitam a concorrência da mais alta corte de justiça.

Esquecem-se da lição de Rui Barbosa: “A autoridade da Justiça é moral e sustenta-se pela moralidade das suas decisões. O poder não a enfraquece, desatendendo-a; enfraquece-se dobrando-a. A majestade dos tribunais assenta na estima pública; e esta é tanto maior quanto mais atrevida for a insolência oficial, que lhe desobedecer”.

Carlos Roberto Siqueira Castro é professor da UERJ e Conselheiro Federal da OAB