A sentença recorta e cola e a morte da justiça

Atualizado em 10 de setembro de 2020 às 8:51
Lula. Foto: AF Rodrigues/Agência Pública

PUBLICADO NO PRERRÔ

POR LÊNIO STRECK, MARCO AURÉLIO CARVALHO E FABIANO SILVA DOS SANTOS

​​​​​Há vários modos de falar de um fenômeno. Por vezes, só a literatura pode dar a dimensão da tragédia. Às vezes dizemos: não temos palavras. De fato, às vezes faltam palavras, porque podem ser pequenas para abarcar a dimensão do drama.

O Prêmio Nobel José Saramago conta uma história ocorrida há 400 anos. Os moradores de um lugar estavam entregues aos seus afazeres e, súbito, ouviram o sino da igreja tocar. Naqueles piedosos tempos, os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento.

Foram todos à igreja e perguntaram a quem deveriam prantear. “O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino”, foi a resposta do camponês. “Mas então não morreu ninguém?”, tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: “Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta.” E contou sua triste história. Perdera tudo. Fora injustiçado pela justiça.

Pois no dia 27.11.2019 ouviu-se o sino tocando no TRF4. Sim, ninguém que tenha nome morreu de morte morrida. Quem morreu foi a justiça. Na busca de condenar o ex-presidente Lula a qualquer custo, negou-se até mesmo a jurisprudência do Supremo Tribunal. Com um drible da vaca no precedente do STF, o TRF4 marcou seu tento. Só que foi um gol de mão.

A decisão chegou ao ponto de ignorar fatos, como se só as narrativas importassem. Sacramentaram o uso de plágio em sentença judicial. Elogiaram. Um pouco de mais de 10% da sentença não seria plágio, disse o relator. Quantos parágrafos devem ser copiados para caracterizar plágio, que, por sinal, é crime previsto no Código Penal? A sentença inaugurou um novo paradigma: a técnica do recorta e cola, em que até mesmo a troca do objeto do crime foi “colado”.

Mais ainda, em nome de um punitivismo sem precedentes, o Tribunal deixou de lado o mais importante valor que o judiciário deve preservar em uma democracia: o dever de imparcialidade.
Passou por cima de fatos notórios, que indicam a parcialidade explícita do MPF e dos juízes que atuaram no primeiro grau. Veja-se que o procurador da lava jato, Carlos Lima, chegou a dizer na TV que a força tarefa “escolheu entre o diabo e o coisa ruim”. Ela tinha lado. Isto não é um fato?

Por isso, o que está em jogo não é um réu. É a credibilidade da própria justiça. Até mesmo na fixação da pena – desproporcional – apareceu a parcialidade, com a fixação de um mítico número 17. O Brasil poderia dormir sem essa, pois não?

Denunciar o modus operandi do TRF4, nesse caso, é obrigação da comunidade jurídica. Por isso, chamamos a atenção para a estranha forma como o direito vem sendo utilizado, desrespeitando as garantias processuais-constitucionais e negando décadas de trabalho da doutrina jurídica.

O que dirão as instâncias superiores? Já não é o réu quem deve confiar na presunção da inocência no seu mais estrito sentido. Na verdade, o que está em jogo é o direito, a vida do direito que não deve morrer. Os juristas devem confiar em uma presunção de imparcialidade que deverá brilhar em grau de recurso.

Tamanha perplexidade com o julgamento do TRF4, só resta aos juristas garantistas a invocação do conto medieval: o sino tocou em uma quarta-feira. No Rio Grande do Sul. Quem morreu? A justiça brasileira. Isso tem de ser dito.