O projeto “saindo das ruas” do governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, pretende retirar moradores em condição de rua, alocando-os no meio rural. Um dos pontos entrelaçados com as justificativas para a “benfeitoria” é a suposta dignidade entregue pelo emprego destes moradores em “plantantions” do interior do estado.
Vamos relembrar um pouco de nossa história: em 1885, os “sexagenários”, após serem “libertados”, eram obrigados a conseguir EMPREGO. Caso isso não ocorresse, eram encaminhados para uma Colônia Agrícola de regime militar. Era a “solução final” para com os que haviam sobrevivido e ganhariam a libertação três anos depois.
É mister destacar que a libertação – com condução (ou condição) para o meio agrícola era uma forma de, após uma vida de trabalhos forçados, eliminar da convivência da sociedade aqueles que não eram bem-vindos. Também não podemos deixar de lembrar que assim como os escravizados (rurais, urbanos, de ganho, de aluguel ou domésticos) os moradores em situação de rua são predominantemente negros.
A sociedade brasileira lança mão da prática do “desterro” (realocação das comunidades pobres e negras para longe dos centros urbanos e de especulação imobiliária valorizada) desde a sua formação. Nossa arquitetura ainda prevê “dependências de empregadas” no mesmo molde dos quartinhos das escravizadas domésticas – aquelas que sempre foram “quase da família”.
E desde então, os escravizados não aproveitados eram despachados para o “eito rural” como forma de eliminação social, com retorno produtivo a partir de condições escravagistas de trabalho. O lucro da mão escravagista (eufemisticamente chamada de “senhor de engenho”) sempre se deu pela exploração do dominante pelo dominado. Ou, parafraseando Hobbes, o lobo sendo o lobo da própria espécie.
Na reta final do século 19, durante o período das falaciosas leis de 31,50,71,85 e 88, a prática de maus tratos já havia sido abolida, porém, sem fiscalização das senzalas (era o compêndio de leis para inglês ver – visto que os britânicos faziam pressão pela extinção do trabalho escravo, pois, após os motores da Revolução Industrial, deixaram de ver razão no sistema escravagista e viam potencial comprador na miríade de braços escravizados em solo brasileiro). Algo nos diz que assim como as senzalas, os albergues do eito paulista também não receberão fiscais – tal qual as vinícolas da Serra Gaúcha.
Outra questão importante na cretinice da proposta é o total desprezo e descaso pela pluralidade cultural, etária e de saúde da população em condição de rua. Mais uma vez a nossa cultura colonial e imperialista dá de mãos com o presente: os negros escravizados foram castrados de suas religiões, idiomas e aspectos culturais sendo sorteados e pré-definidos por biotipo e comportamento, sempre primando pela higienização das cidades (retirá-los dos olhos puros dos cristãos da sociedade). Não levar a saúde em consideração, e esquecer a liberdade do ir e vir (agora convém, não?) é também reproduzir as plantantions de café da Província de São Paulo dos idos do 19.
Como diria Mario Maestri: “o Brasil é a nação mais bem acabada em sua estrutura escravagista”. Completo: o governo de São Paulo lança mão da pior parte da história de seu estado. História sempre apoiada por uma mídia que à época começava por A Província e hoje se chama O Estado.