A travesti na UFMA e a esquerda que facilita o trabalho da extrema-direita. Por Luis F. Miguel

Atualizado em 18 de outubro de 2024 às 18:22
Historiadora travesti faz dança erótica em apresentação na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Foto: Reprodução

Tem uma parte da “esquerda” que parece ter como vocação facilitar o trabalho da Brasil Paralelo e de outros extremistas no ataque ao conhecimento, à universidade pública e à ciência.

Ontem, voltou a atacar a estudante de História e cantora que já tinha alimentado, tempos atrás, a gritaria contra a “bagunça nos campi” com a mesma performance “educando com o cu”.

Em uma mesa redonda sobre gênero e sexualidades, ela entoa sua composição sobre “mestrado da putaria”, sobe na cadeira e rebola de costas para a plateia, com o minivestido levantado.

(Em nota oficial, a Universidade Federal do Maranhão afirmou que “está averiguando o ocorrido e tomará as providências cabíveis“. Tomara que marque uma posição clara.)

Não vou dar o nome – afinal, o objetivo da performer é obter notoriedade por meio do escândalo e eu já estou colaborando demais com isso.

Ela mesma publicou o vídeo em sua página, em busca de likes. Tinha conseguido, até hoje de manhã, uns mil e poucos.

Mas só na página da deputada Bia Kicis, que o publicou muitas horas depois, o vídeo já tinha 30 vezes mais curtidas. Kicis anotava que a performance tinha ocorrido com financiamento público.

O resultado líquido da transgressão: levantar a bola para que até uma bolsonarista de poucas luzes possa lacrar em cima.

Mas é isso: não importa que se fragilize a universidade pública, que o debate sobre gênero seja vilanizado, que as ciências humanas sejam desmoralizadas, que seja um tiro no pé para a defesa dos direitos das travestis. Todas estas pautas são parasitadas por uma gente movida por exibicionismo e desejo de notoriedade.

Na postagem com o vídeo, a performer diz “entender que a universidade é sim lugar de múltiplas formas de conhecimento, inclusive do proibidão”.

“Proibidão”, para quem desceu no planeta recentemente, é o tipo de funk que traz letras sexualmente explícitas, muitas vezes com forte objetificação das mulheres, e/ou faz apologia do tráfico de entorpecentes.

O discurso pronto das “múltiplas formas de conhecimento” é bonito, mas não se aplica ao caso. A universidade acolhe “formas de conhecimento” que preenchem determinados critérios de cientificidade.

O funk proibidão entra como objeto de estudo, não como “forma de conhecimento”.

Por coincidência logo depois de ter visto a reportagem sobre a performance na Universidade Federal do Maranhão, li um artigo em que professores de universidades de elite nos Estados Unidos reclamam que uma parcela cada vez maior de seus estudantes se mostrava incapaz de ler um livro do começo ao fim.

Creio que os dois fenômenos estão ligados.

A democratização do acesso à educação superior, que é uma conquista importante, vai perdendo sentido à medida em que este ensino superior se mostra menos capaz de prover os conhecimentos que deveria.

Com base em uma postura muitas vezes paternalista e condescendente, para não dizer arrogante e preconceituosa, vamos rebaixando nossos parâmetros, permitindo a contaminação por abordagens místicas, mitológicas ou simplesmente pelo oportunismo disfarçado de militância identitária.

Em vez de democratizar o acesso às ferramentas que proporcionam o pensamento crítico e emancipador, distribuímos diplomas. Que dizem cada vez menos das competências de quem os porta, que se desvalorizam.

Um presente para os detentores do capital econômico, sempre empenhados em reduzir o capital cultural à insignificância.

Com muito mais propriedade, outra funkeira, Tati Quebra Barraco, cantava: “Piranhas doutoradas farão revolução”.

Esse devia ser nosso horizonte: uma universidade aberta a pessoas de todas as extrações sociais, que efetivamente dê a elas os instrumentos para agir conscientemente no mundo.

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