Por Fernando Cavalcanti*
Na esteira da estapafúrdia notícia de que a fabricante de aviões ucraniana Antonov teria cancelado um suposto investimento de US$50 bilhões (R$ 249 bilhões) no estado de São Paulo por conta de declarações do presidente Lula a respeito da guerra, é necessário notar algumas questões.
Na vontade desmedida de publicar rápido e de acreditar piamente no que as fontes disseram, aparentemente ninguém na rede CNN foi checar as informações para saber se elas procediam ou se pelo menos faziam algum sentido.
Em um país como a Ucrânia, onde o PIB (Produto Interno Bruto) é de US$ 200 bilhões, que está no meio de uma guerra e que passa o pires, mundo afora, todos os dias em busca de doações para sustentar seu esforço de guerra, soa altamente improvável que uma empresa estatal tenha a capacidade de investir US$ 50 bilhões, ou um quarto do PIB do país, no exterior.
Esse montante também é maior que a somatória brasileira dos Investimentos Diretos no País (IDP) em 2020 e em 2021, que foram de US$ 38 bilhões e US$ 46,4 Bilhões, respectivamente. Em 2022, o IDP registrou seu maior valor em dez anos, chegando a US$ 90 bilhões, somanto todos os investimentos estrangeiros no país. Se fosse real o investimento anunciado pela CNN, o Brasil terminaria 2023 com aportes internacionais jamais vistos na história nacional.
Para além disso, é preciso verificar as informações que estão disponíveis a qualquer repórter sobre saúde financeira e a capacidade industrial da Antonov Company.
Um passado glorioso
A Antonov era uma potência da aviação nos tempos da União Soviética, quando projetou e produziu uma série de aeronaves lendárias, incluindo o AN-124 e o AN-225, dois gigantes do transporte pesado, além de aeronaves de transporte médias e leves, como o AN-2, um avião biplano de trem de pouso fixo, com um motor convencional a pistão, que fez seu primeiro voo em 1947 e continua a voar até hoje, inclusive no Brasil. Ou o AN-12, o equivalente soviético do famoso Hercules norte-americano, muito utilizado na invasão soviética do Afeganistão.
Mas a fama mesmo veio com os aviões de transporte pesados e superpesados que compunham a espinha dorsal da aviação de transporte estratégico da União Soviética. Começando com o AN-22, o maior avião turboélice de transporte pesado do mundo, que fez sua estreia internacional no Salão Aeronáutico de Paris em 1965 e voa tanto na Rússia quanto na Ucrania até hoje. Ele carrega até 80 toneladas de carga.
Depois, veio o AN-124, que revolucionou o transporte de cargas pesadas no mundo, quando se tornou acessível à aviação comercial. Originalmente projetado como um transporte militar superpesado, após a dissolução da União Soviética passou a transportar cargas civis e se tornou o avião de referência para cargas superdimensionadas, como um submarino ou até mesmo outro avião. Ele pode levar até 120 toneladas de carga.
E, é claro, o AN-225, o maior avião do mundo (em capacidade de carga), impulsionado por seis motores turbofan Progress D-18T, de 229.5 kN de empuxo cada, que carregava até 250 toneladas e do qual apenas uma unidade foi completada. Esse avião lendário, cuja imagem é reproduzida no topo desta reportagem, infelizmente foi destruído recentemente na batalha do aeroporto de Hostomel, na Ucrânia.
Veja aqui todos os aviões da Antonov.
O presente
A Antonov é hoje uma empresa pequena, muito menor do que a Embraer, de poucos produtos e quase nenhuma encomenda. A única parte do grupo que vai bem é a Antonov Airlines, especializada em transporte de cargas superdimensionadas.
Seu único avião em produção atualmente é o AN-178. Trata-se de um cargueiro médio, com capacidade na casa das 18 toneladas, concorrente direto do Embraer C390 Millenium.
O AN-178 teve sua única encomenda para o exterior cancelada em 2021. O Peru havia encomendado uma unidade do avião em 2019, mas, em meio a uma disputa sobre prazos de entrega e pagamento, o negócio foi desfeito.
Antes de começar a fabricar em 2019 a unidade que seria vendida ao Peru, a Antonov ficou quatro anos sem fabricar um avião sequer. Já no ano de 2021, a estatal ucraniana teve uma receita de apenas US$ 340 milhões, proveniente principalmente da manutenção de aviões antigos e da produção de peças de reposição. E em 2021, a companhia tomou um empréstimo de US$ 1 milhão para investir em sua produção. Internamente, a Antonov tem três encomendas do próprio governo Ucraniano, sem qualquer entrega até agora.
Com escassez de dinheiro e de pedidos, a Antonov tentou diversas parcerias ao redor do mundo nos últimos anos, incluindo uma com a China para voltar a produzir o AN-225, outra com a Índia para produzir sob licença o AN-178 e outra com a Arábia Saudita para produzir naquele país o turboélice AN-132. Essa última tentativa de parceria chegou a avançar um pouco nas negociações, mas, depois, como as outras, não alcançou resultado concreto algum.
Assim, fica claro para qualquer pessoa que entenda o mínimo de aviação, de negócios, ou mesmo que tenha algum bom senso, que esse número que a CNN divulgou (posteriormente creditando a “informação” ao governo estadual de São paulo) é completamente fictício, incompatível com a capacidade de investimento da empresa e mesmo com a realidade dos fatos.
A empresa de comunicação pediu desculpas pelo trabalho imperfeito após cair no ridículo com a fake news que publicou, e culpou suas fontes no ligadas ao governador Tarcísio de Freitas (PL-SP) pelo vexame que passou. Resta, agora, que o governo paulista explique sua parcela de culpa pela desinformação a si creditada.
*Fernando Cavalcanti é jornalista, fotógrafo, ex-piloto e apaixonado por aviação