Por Kakay
“Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza das chamas em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”
O Último Poema- Manuel Bandeira
No dia em que as vacinas contra a covid-19 acabaram em 5 capitais e em várias outras cidades, em que a transmissão do vírus volta a subir e, pelo 28° dia seguido, a média de mortos fica acima de 1 mil no país, os grandes assuntos que dominam a imprensa são a prisão de um deputado fascista que ninguém sequer sabe o nome, a eliminação do Nego Di do BBB e outros temas que emolduram a realidade brasileira. É claro que ninguém aguenta mais falar só sobre a angústia de ver a morte rondando, a tristeza do isolamento dos que levam a ciência a sério, o desespero do pânico que acomete os infectados, mas, convenhamos, alguma coisa está fora da ordem.
O tal deputado foi preso por atentar contra a estabilidade democrática em vídeos gravados de baixíssimos níveis nos quais profere xingamentos, uma fala completamente sem nexo, faz ameaças de morte às autoridades e prega o fechamento do Supremo Tribunal Federal e a volta do AI-5 (Ato Institucional 5), dentre outras barbaridades. Opa, quem é mesmo o autor de tantos impropérios, absurdos e crimes? Ufa, é um deputado troglodita e não o líder dele, o presidente da República.
Na verdade, posso pressupor que o tal deputado está se espelhando no comportamento do chefe do executivo para angariar simpatia e popularidade. Por sinal, é instigante que sempre que os índices da pandemia se tornam mais dramáticos surjam histórias diversionistas para o Brasil “esquecer” o vírus, as mortes, o descaso nos hospitais, a falta de programa para o combate da doença. Como se fosse possível esconder o caos, a tragédia. Mas isso é um fato e parece ser uma estratégia. Lembro-me do poeta Luiz Gama, no soneto Ao Mesmo:
“Silêncio, ó charlatão!
Nem mais um passo,
Que levo-te a vergalho,
à palmatória,
transformo-te num burro,
e mais não faço.”
O próprio deputado preso parece fazer parte dessa estratégia. Não é crível alguém ser tão bizarro, tão tosco, atrasado, agressivo e preconceituoso. Na verdade, sabemos que é possível e até conhecemos em quem ele se espelha, mas que país merece isso em meio a uma pandemia? Vou repetir para não parecer falso: a vacina está acabando no Brasil. O país que tinha um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo, com uma capacidade de vacinar todos os brasileiros em tempo recorde, teve o SUS sucateado. Nossas instituições de pesquisa na saúde, orgulho internacional, foram abandonadas por falta de investimentos e prioridade.
Nossa estratégia de enfrentamento da pandemia foi entregue a um general que presta subserviência a um capitão negacionista. As ofertas de compra de vacinas foram negligenciadas e a prioridade foi adquirir a cloroquina. Nós não temos vacina em meio à maior crise sanitária dos últimos séculos. E não temos por uma opção do governo que entendeu que as recomendações dos cientistas, dos médicos, da OMS (Organização Mundial da Saúde), enfim, eram meras opiniões que não precisariam ser seguidas. Ou por razões financeiras, cumpre investigar.
É necessário prestar atenção no que disse o fundador e primeiro presidente da Anvisa sobre a capacidade instalada no país para enfrentar a necessidade de vacinar a população. O Brasil tem estrutura para administrar 3,04 milhões de vacinas contra covid-19 por dia. Ou seja, se contarmos a vacinação apenas nos dias úteis, 20 dias por mês, temos capacidade de vacinar 60 milhões por mês. Em um momento de pandemia, é claro, a vacinação pode ser ininterrupta, o que garantiria 90 milhões de brasileiros vacinados por mês. Já teríamos vacinado todas as pessoas em território nacional.
É bom deixar claro que isso não ocorreu por conta única e exclusiva da falta de política séria do governo no enfrentamento da crise sanitária, por não ter adquirido a vacina. Os responsáveis por esse quadro são as autoridades federais, a política negacionista e a campanha feita contra a vacina. Logo, são responsáveis diretos pelo excesso das mortes, pelo desastre econômico, pelas angústias que marcaram a ferro e fogo as almas do nosso povo.
Fique registrado que é gravíssimo um deputado pregar a volta da ditadura, o fechamento do Supremo, ameaçar Ministros da Suprema Corte, ofender os poderes constituídos, bradar pelo retorno do AI-5 e dos anos de chumbo. Mas, convenhamos, isso é o que o Presidente da República fez e faz diversas vezes. A novidade é a agressividade com que foram tratados os Ministros do Supremo, na mesma linha de boçalidades do chefe dele, sendo que o chefe vomita também contra o Congresso Nacional.
Mas, enquanto debatemos o risco para as instituições de um deputado desconhecido e medíocre, o líder dele passa um projeto de armamento que faz corar de inveja os grandes países armamentistas. Não é só um projeto para segurança pessoal, é uma proposta de armar a população e, segundo especialistas, visa abastecer o crime organizado e a milícia com a facilitação de compra de armamento via mercado legal. É a privatização da segurança pública. Os que sobreviverem ao vírus não escaparão das armas.
No ano passado a população comprou 32 milhões de projéteis, a mesma quantidade que as forças de segurança pública. Estatísticas apontam que o número superou em 143% o quantitativo de munições do exército, o que reforça minha tese de que esse governo confia e aposta mais na milícia, na segurança privada e nos seus seguidores do que nas forças armadas. E temos que ter em mente que o nível intelectual desse grupo é parecido com o do deputado que foi preso por imitar o líder. Ou seja, estamos armando verdadeiros assassinos em potencial. Assassinos da democracia, da vida civilizada, da coisa pública, das relações respeitosas, da vida em sociedade, enfim.
Imagine o que é a pessoa se preparar ao longo da vida para ser ministro do Supremo, para enfrentar as grandes indagações jurídicas e os grandes embates nacionais e, de repente, ter que se relacionar com um presidente da República completamente fora da realidade e, pior, ter que conviver com ameaças vulgares, mas graves, de políticos, com ou sem mandato, a serviço de um fascismo institucionalizado. Bestas feras sem nenhum critério, sem nenhuma hipótese de diálogo. Um governo de extraterrestres cujas propostas não suportam nenhuma análise crítica, nenhuma discussão intelectual, nenhuma hipótese de reflexão. A agressividade desse deputado, o idiota da vez, é tão vulgar, tão repulsiva, que dá náusea perder tempo com ele.
Eu sei que temos que discutir os limites e a legalidade da prisão, os contornos do flagrante, as consequências para o devido processo legal da ordem de prisão ter partido do ministro sem o pedido do Ministério Público, tudo grave e fundamental para o estado democrático de direito, mas cansa. A mediocridade é acachapante. O nível das agressões beira as pornochanchadas e nós nos transportamos para a boca do lixo sem, é claro, o charme dos nossos filmes da época. Faz-me lembrar do velho Mario Quintana, em Emergência:
“Quem faz um poema abre uma janela,
Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.”
E, enquanto tentamos fazer com que os poderes constituídos mantenham uma harmonia constitucional, o país mergulha num precipício sem paraquedas e sem ter ideia do fundo do poço. Humilhante ver as filas de infectados para tentar conseguir um lugar no hospital, sem nenhuma perspectiva de combate sério do vírus. Neste momento, 2.32 % da população do Brasil já recebeu a primeira dose da vacina. Insignificantes 2.32%. Criminosos esses números. E nós temos que tentar respirar um ar que já falta ao país nessa tentativa de uma resistência à mediocridade.
A nossa falta de ar, ao menos, nos permite ainda assim seguir em frente, mas a falta de ar que vem da falta de responsabilidade no trato com a crise sanitária não, essa falta de ar mata. E nós todos temos responsabilidade com esse dramático estado de coisas. Não podemos deixar crescer muros que nos separem. Muros de pedra ou de indiferença. A política desses fascistas ergueu muralhas, cavou fossos e construiu alçapões. Tudo para que nós não façamos o necessário enfrentamento do endurecimento brutal que eles estão instalando.
Eles são como placas de gordura nas nossas veias. São como um véu turvo que desce no cristalino e impede a visão, cegando-nos a todos. São como o vazio das madrugadas de segunda-feira nas cidades do interior, onde só sobram os coretos vazios sem a algaravia dos passantes. Uma solidão doida. Um silêncio ensurdecedor.
Esse deputado caricatural não deveria tomar nosso tempo, mas ele significa nossa derrota. É na mediocridade dele que esse governo se ampara com milhões de seguidores, tanto que ele desestabiliza as estruturas democráticas com seu ataque às instituições. Ele não, claro, mas o que ele significa, o que ele representa.
Fazer a resistência democrática dentro do Judiciário e dentro do Parlamento faz a democracia se tornar mais forte. Mas é necessária uma resistência interior, uma busca, quase fuga, de um espaço sem esse massacre diário de tanta banalidade. A coragem de não levar tão a sério essa avalanche de idiotices, a sensibilidade de priorizar o contrário do que está posto e a rir desses seres bizarros, incultos e banais. Sem isso nós acabamos ficando parecidos com eles e aí não terá valido a pena. Recorro-me a Paul Éluard, nos últimos versos do imortal soneto Liberté:
“Em meus refúgios destruídos
Em meus faróis desabados
Nas paredes de meu tédio
Escrevo teu nome
Na ausência sem mais desejos
Na solidão despojada
E nas escadas da morte
Escrevo teu nome
Na saúde recobrada
No perigo dissipado
Na esperança sem memórias
Escrevo teu nome
E ao poder de uma palavra
Recomeço a minha vida
Nasci pra te conhecer
E te chamar
LIBERDADE.”