Publicado originalmente no jornal GGN
POR ALDO FORNAZIERI, professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)
As manifestações do dia 29 de setembro contra a candidatura de Bolsonaro representam um marco histórico na participação das mulheres na política, seja pelo seu significado em si, seja pela amplitude e força que os protestos agregaram. As manifestações não podem ser entendidas apenas como a rejeição de um candidato específico numa campanha eleitoral determinada no ano datado de 2018. Este é apenas o contexto e o ambiente em que elas ocorreram. Mas as suas motivações são bem mais abrangentes do que essas circunstâncias.
As manifestações de sábado precisam ser entendidas como um grito de revolta e por liberdade das mulheres. De revolta, pelas opressões, pelas humilhações e pelas violências seculares de que são vítimas. E de liberdade, pelo despertar de uma nova consciência feminina e feminista, de que os direitos de que elas carecem precisam ser conquistados pelas próprias mãos, pelas próprias lutas, pois os sistemas políticos, dominados por homens, mesmo que progressistas e de esquerda, têm se mostrado lerdos e incompetentes em promover uma igualdade efetiva de direitos. Com este entendimento, as manifestações devem servir de alerta aos próprios partidos de esquerda que, de modo geral, têm brandido as pautas específicas das mulheres, dos negros, dos jovens, dos pobres, das periferias, dos índios, dos LGBT, como retórica programática e como ativos eleitorais.
Esses grupos sociais aqui nomeados – mulheres, negros, jovens, pobres, periferias, índios, LGBT – são os mais carentes de direitos e os que vivem as piores condições de opressão, de humilhação e de falta de humanidade no Brasil. Dentre esses grupos, as mulheres constituem uma singularidade especial, pois elas se interseccionam e atravessam todos os outros grupos. E, dentro de cada grupo, são elas que sofrem as maiores violências e as maiores opressões.
Desta forma, as mulheres carregam a potência de uma múltipla consciência e de múltiplas lutas. A jovem negra da periferia, por exemplo, terá que lutar como mulher, como jovem, como negra, como pobre e como da periferia e, eventualmente, como lésbica. Ademais, as mulheres vêm construindo ao longo dos tempos um acervo enorme de conhecimentos acerca de suas condições de desigualdade, desumanidade e violência a que estão submetidas e, hoje, estes conhecimentos e a experiência acumulada em várias lutas são as armas da ira e da indignação que fazem explodir novas lutas não só no Brasil, mas em vários outros países.
As histórias de luta pela liberdade são marcadas pelo protagonismo e pela participação de quem mais precisava dela. Nas história das conquistas de direitos, os setores carentes de direitos foram decisivos para a sua conquista. É verdade que, muitas vezes, a consciência da dominação, da exploração e da opressão vem de fora dos grupos dominados e oprimidos. Mas não se produz luta pela liberdade, pela dignidade e pela humanidade se esses grupos não adquirirem consciência de sua condição e não lutarem pela mudança. O Brasil só mudará, no sentido de se tornar um país mais justo, igual, livre e humanizado, se esses grupos todos tomarem em suas mãos a tarefa de se darem um destino, dando um destino e um futuro diferente para o Brasil.
Na verdade, o que se observa hoje é que, no Ocidente, as correntes políticas liberais, social-democratas e de esquerda promoveram um falso universalismo ou um meio universalismo. Um universalismo assentado no formalismo legal e constitucional de afirmação de direitos, mas que, na realidade efetivas das coisas, foi um universalismo que foi deixando à margem das estradas da histórica vários grupos sociais específicos porque as suas demandas específicas e os seus carecimentos específicos nunca foram considerados de forma eficaz para a sua efetivação prática.
Assim, as democracias ocidentais consagraram uma grave dicotomia entre o que proclamam as leis e as constituições em contrate com a realidade das mulheres e de vários outros grupos sociais específicos. Os partidos em geral não foram capazes de perceber este impasse e, as esquerdas em particular, orientadas pela retórica da matriz da luta de classes, destinaram um espaço marginal aos carecimentos e ao empoderamento desses grupos. Desta forma, é preciso encontrar uma conexão profícua entre os carecimentos desses grupos e um novo universalismo, real, fáctico, que vá além do reconhecimento formal de direitos nos códigos legais.
Ele, Bolsonaro, pela sua prática política, pela sua história, pela sua retórica, é a expressão da crueldade e da maldade que é perpetrada contra as mulheres, contra os negros, contra os pobres, contra as periferias, contra os índios e contra os movimentos LGBT. A chamada nova direita, em suas diferentes facetas nos diversos países em que se articula, é a manifestação clara da ideia de domínio de um poder racial branco, machista, homofóbico, racista, misógino e conservador. Ele é tudo isto. Na verdade, esses grupos de extrema direita, odeiam os direitos civis, a diversidade social e a pluralidade cultural. Pretendem garantir privilégios materiais, culturais e políticos de forma predatória e pela prática da violência.
O #Elenão, empunhado pelas mulheres, rompeu com a frieza das redes sociais, ganhou as ruas em forma de marchas e produziu o calor do encontro, dos abraços, da fricção de corpos, dos cantos e dos gritos – calor imprescindível para produzir as transformações necessárias. Nenhuma transformação virá da frieza, do distanciamento e do isolamento das pessoas. É verdade que a modernidade nos mergulha nos abismos da solidão individual. Para rompê-la, precisamos ser solidário com os outros e com a luta dos outros.
O #Elenão e as mulheres esquentaram uma campanha eleitoral fria, apática, asséptica, quase que reduzida a xingamentos. Romperam os limites calculistas e o formalismo dos partidos, mostrando que é possível mobilizar e que as pessoas protestam quando as motivações são corretamente encaminhadas.
As lutas e os debates que emergem a partir das temáticas das mulheres, dos negros, dos jovens, das periferias, dos pobres e dos índios estão criando o ambiente para o surgimento de uma nova visão e de uma nova militância de esquerda, que passam por dentro e por fora dos partidos e não se situam apenas num partido. Esta militância está percebendo que nunca existiu democracia no Brasil para a maioria da população. A democracia que existe é apenas para 25% a 30% das pessoas – para as classes médias e altas.
Para os pobres não há democracia porque não há direitos; não há liberdade porque não se pode escolher alternativas por conta das drásticas restrições materiais; não há saúde porque nem sequer há acesso a médicos; não há igualdade de condições porque as condições são brutalmente desiguais. A maioria das pessoas não estão abrigadas no artigo 5º da Constituição. Para elas, o Estado sempre foi de exceção. Esta consciência de que não há democracia para mulheres, pobres, negros e para as periferias é um fio de esperança de que surgirão novas formas de luta e de organização para dar sustentação às mudanças e conquistas.