Jornalistas que cobrem o Planalto falam em off: “tarefa de alto risco”
O que sempre foi rotina do trabalho dos jornalistas que fazem plantão diariamente na portaria principal do Palácio da Alvorada, em Brasília, passou a ser tarefa de alto risco no governo Jair Bolsonaro. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF) tem recebido dezenas de denúncias sobre o grau de insegurança e ameaça ao trabalho dos profissionais de imprensa, que são agredidos, seguidamente, por apoiadores do presidente da República que frequentam o local.
As agressões verbais vão desde xingamentos, intimidações até tentativas de expor publicamente os jornalistas, que na área reservada à cobertura do acesso ao Palácio, são separados dos manifestantes apenas por gradil.
Além disso, em alguns casos, pessoas não autorizadas têm acessado a sala reservada à imprensa, com atos de provocação. Grosserias e atitudes de desrespeito de Bolsonaro aos setoristas contribuem para jogar mais lenha na fogueira.
A Praça dos Três Poderes virou palco de seguidas agressões físicas a profissionais da imprensa. No último dia 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, equipe do O Estado de S.Paulo, e repórter do Poder 360 foram agredidos com insultos e chutes, enquanto cobriam ato em apoio ao governo Bolsonaro e com pautas antidemocráticas e inconstitucionais. Profissionais do jornal Folha de S.Paulo e do site Os Divergentes sofreram empurrões ao tentar ajudar os colegas. No último domingo (17), uma apoiadora do presidente bateu com o mastro de uma bandeira do Brasil na cabeça de uma repórter da Band TV que esperava para entrar ao vivo pela emissora.
Diante da escalada da violência, o SJPDF vem tomando providências. E avisa que, se necessário, ocorrerá a medidas judiciais. Os jurídicos do sindicato dos jornalistas e da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), junto com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), estudam entrar com ação coletiva em defesa da imprensa, possivelmente contra crimes de incitação à violência. “Quanto à segurança específica dos jornalistas setoristas, o Ministério Público Federal será um bom caminho, pois está investigando as agressões cometidas em 3 de maio”, diz Juliana Cézar Nunes, coordenadora geral do sindicato dos jornalistas do Distrito Federal. Atos de agressão a profissionais de imprensa se espalham pelo país: “Tivemos notícias terríveis de Juiz de Fora (MG), onde jornalistas da Globo não conseguem gravar na rua porque sofrem ameaças. O risco é muito grande, a situação muito grave”, destaca Juliana, referindo-se ainda a recentes ataques contra profissionais em João Pessoa (PB), e pichações em muro no centro de Belo Horizonte (MG). E mais: Nesta quarta- feira, 20, uma equipe da TV Integração, afiliada da Globo em Barbacena (MG), foi agredida . O repórter cinematográfico apanhou com o tripé da câmera, que também foi chutada pelo agressor.
No dia seguinte aos ataques de 3 de maio, o sindicato de Brasília enviou oficio ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) exigindo medidas de proteção, em defesa da garantia do pleno exercício profissional do jornalismo. A resposta do GSI veio em 14 de maio, dizendo que “as medidas adotadas estão condizentes com as atribuições desta Pasta, previstas em legislação , de garantir a segurança das autoridades e que aquelas medidas acabam por beneficiar, em termos de segurança, o público em geral”.
O documento do GSI referia-se a áreas específicas reservadas à imprensa e ao público em geral, separadas por gradil; inspeção de segurança, com utilização de equipamentos de detecção de metais; cadastramento de profissionais da imprensa; obrigatoriedade de uso de máscaras de proteção; e orientação verbal para distanciamento físico.
Medidas insuficientes
Jornalistas setoristas consideram as medidas importantes, porém insuficientes, diante do quadro de violência crescente, e do risco de contaminação pelo covid-19 provocado pela aglomeração de pessoas na área de cobertura da imprensa. “Os jornalistas estão lá porque exercem atividade essencial, ao contrário dos apoiadores do presidente – claque que está colocando em risco a saúde dos outros”, diz Juliana, do SJPDF, em defesa de ações mais restritivas.
Denúncias de violência chegam ao sindicato da categoria em Brasília por meio dos próprios profissionais, que buscam orientações de como proceder, solidariedade e apoio jurídico. A coordenadora geral do sindicato conta que ofensas de apoiadores do presidente começam de manhã cedo, logo que chegam à portaria do Palácio, por volta das 7 horas. A recomendação é não cair em provocações, e manter o registro das agressões em vídeo ou fotografia, como provas para possíveis ações judiciais.
Ofícios encaminhados a órgãos da Presidência da República e reuniões com chefias de empresas jornalísticas também são recursos utilizados pelo sindicato para alertar sobre questões de segurança. Esse tipo de interlocução com dirigentes de empresas de comunicação e entidades representativas do setor é feito também pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI): “Talvez pela primeira vez, conseguimos reunir donos de empresas jornalísticas e jornalistas para tratar de assunto de interesse dos jornalistas”, destaca Paulo Jeronimo de Sousa, presidente da ABI.
Para profissionais da imprensa que cobrem o Palácio do Planalto “a situação é grave, com ameaças ao pleno exercício da profissão”. Eles reconhecem que a violência se espalha pelo país, com grupos organizados de extrema direita com estratégia prioritária de ataques a jornalistas. Os atos refletem o comportamento de Bolsonaro, que, segundo pesquisa da Fenaj, foi o responsável por 121 dos 208 ataques contra veículos de comunicação e jornalistas compilados no Brasil no ano passado, o que representa 58% do total.
No último dia 14, o sindicato dos jornalistas em Brasília voltou a cobrar medidas urgentes de segurança. A pauta de reivindicações, construída em diálogo com os jornalistas, foi encaminhada ao GSI, à Secretaria de Governo (Segov) e à Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom).
Entre as reivindicações estão instalação de câmeras de segurança na entrada em todos os locais de circulação e trânsito de pessoas, incluindo a área em frente à sala de imprensa; entrada diferenciada para apoiadores e jornalistas; banimento de acesso a frequentadores que agredirem profissionais de imprensa; e garantia de segurança também no estacionamento, pois já houve casos de perturbação por parte de apoiadores no momento em que jornalistas, posicionados na área reservada, estavam ao vivo na TV.
Atos de agressão são relatados por profissionais de diferentes veículos de comunicação – jornais impressos, revistas, site de noticias, e emissoras de televisão. Os depoimentos ao site da ABI foram dados em ‘off’ , preservando a identidade dos colegas. Muitos jornalistas em Brasília evitam atualmente circular com o crachá do jornal, para não correrem riscos de ataques da militância bolsonarista. Como medida de precaução, resolveram andar apenas com credenciais de acesso aos locais de cobertura. Os mais visados são repórteres de televisão, com rosto conhecido do público.
O modelo de entrevistas de Bolsonaro na portaria do Alvorada contribui para o clima de agressividade e tensão. “A proposital proximidade física entre os jornalistas e os apoiadores, que opinam e interferem nas entrevistas ‘quebra-queixo’ reforça o discurso do presidente contra a imprensa”, afirmam setoristas.
Em recente artigo no Globo, o jornalista Ascânio Seleme sugeriu que jornais, sites de notícias, emissoras de TV e rádio deveriam abandonar a cobertura das manhãs presidenciais no Palácio da Alvorada. “Poderia se fazer um pool, e cada dia apenas um cinegrafista, um operador de áudio e um fotógrafo gravariam a saída diária de sua excelência, sem perguntas e sem transmissão ao vivo. Ninguém mais seria ofendido por Bolsonaro, e as bobagens que ele disser para a sua claque ficariam registradas. E, claro, só se publicaria o que de fato importasse”.
“Nossa função é questionar o presidente”
A ideia de suspender plantões na portaria do Alvorada, como alternativa de não expor jornalistas a constrangimentos e riscos de agressões, chegou a ser discutida, mas não acatada. Pelo menos por enquanto. Para acontecer, a decisão teria que partir da direção dos veículos de comunicação. “Seria muito interessante se houvesse um movimento bem organizado nesse sentido, com respaldo das empresas”, considera Juliana. Por outro lado, ela pondera que mostrar à opinião pública o comportamento agressivo do presidente e de seus apoiadores só escancara, cada vez mais, como eles não suportam nada que seja democrático”.
A sugestão divide opiniões. “Nossa função é questionar o presidente. Faz parte do nosso trabalho”, dizem setoristas contrários à suspensão dos plantões. Para estes, os rompantes de Bolsonaro têm que ser mostrados à sociedade. “A situação é desgastante, mas é obrigação do jornalista cobrir a instituição Presidência da República, independente de quem seja o presidente da ocasião. Temos que respirar fundo e não cair na narrativa que o presidente quer traçar”, afirmam alguns. “Não é porque o presidente não faz o trabalho dele, que é preservar o decoro do cargo, que vamos deixar de fazer o nosso, que é informar”, dizem outros, convencidos de que é preciso manter serenidade: “Entrar em uma briga ou discussão seria dar mais munição a eles. Em casos mais graves, acionamos a segurança do governo”.
Já representantes das empresas de comunicação entendem que não podem abrir mão de entrevistas diárias do presidente, independente da exposição de seus profissionais.
A cobertura da Presidência da República é função de prestígio, desempenhada por profissionais experientes, que conhecem bem os protocolos. Juliana, a coordenadora geral do sindicato de Brasília, já cobriu o Planalto em administrações passadas e faz a comparação: “No caso do Lula, os ‘quebra-queixos’ aconteciam após solenidades, não na saída do Alvorada. A Dilma fez algumas vezes, mas foram aparições rápidas e pontuais. Fernando Henrique falava muito pouco dessa forma”. A jornalista lembra de ter presenciado na ocasião algumas agressões verbais a jornalistas, “mas nada que se compare com o que está ocorrendo agora”.
Colegas dizem ser novidade no governo Bolsonaro “a necessidade de fazer portaria no Palácio da Alvorada todos os dias, de manhã e à tarde, num cercadinho, lado a lado com a militância fanática. Virou rotina sermos xingados de comunista, de lixo e ‘vai para a Venezuela’. O próprio presidente se sente à vontade para incentivar esse comportamento e, com isso, legitimar a violência de sua plateia. Em governos anteriores não havia esse tipo de situação”.
Eles explicam que recentemente o GSI fez dois cercadinhos, lado a lado, um para imprensa outro para apoiadores. Até a semana passada, eram separados apenas por uma grade. Agora são duas grades, com um certo distanciamento.
Mas há áreas que são comuns, como o estacionamento e a fila de acesso ao raio x da segurança. Além disso, é preciso fazer, todos os dias, um cadastramento, inclusive os jornalistas credenciados, indicando nome, CPF e veículo de imprensa. Isso é feito na frente de todos, inclusive de apoiadores, que, se quiserem, registram nossos dados. Da mesma forma, todos se misturam na entrada e na saída da área, o que contribui para a exposição dos jornalistas. Também a sala de imprensa fica em caminho comum de jornalistas e apoiadores. Estes últimos já chegaram a abrir a porta para xingar a imprensa e revirar lixeiras. Os jornalistas querem a instalação de câmeras de segurança no local.
O fato é que, em meio ao circo do cercadinho, temos um governo menos transparente, uma imprensa mais sob risco, um presidente que responde com raiva a perguntas dos setoristas, ou não as responde, e que inflama a militância para dificultar o trabalho da cobertura. “Num ambiente favorável a ele, blindado por seus torcedores, o presidente se sente livre para performar. Com isso, além da violência, traz ruído à informação”.
O estilo da comunicação presidencial se reflete em órgãos como a Secom, que evita respostas à imprensa: “Não vamos comentar” é a frase mais ouvida.
“Esse ambiente dificulta abordagens mais aprofundadas, o que me parece uma estratégia do presidente, já que ele não costuma ter conhecimento suficiente para uma entrevista mais complexa”, constatam repórteres ouvidos pelo site da ABI.
Na comparação com governos anteriores, temos, em geral, mais dificuldade em acessar informações básicas (agendas, esclarecimentos sobre decretos, detalhes sobre reuniões com autoridades). O gabinete presidencial é pouco acessível. Entrevistas organizadas são raras, a não ser em um período especial, como agora na pandemia. O presidente fala em ‘quebra-queixo’ com frequência, mas mantém tom hostil com a imprensa e interrompe frequentemente os repórteres com perguntas que não são de seu interesse responder.
Diante da dificuldade de acesso à informação, um dos recursos usados pela imprensa, é, cada vez mais, o Diário Oficial da União (DOU), com base em medidas oficiais, pois “o bastidor nesse governo é quase que pedir para dar ‘barriga’. Recebo informação aqui e ali, mas prefiro não publicar por questões de credibilidade de fontes”.
Para setoristas em Brasíia, “a falta de compreensão do governo Bolsonaro sobre o papel da imprensa e do interesse público, dificulta procedimentos dos mais elementares, como organizar cobertura de uma pauta, ter acesso à agenda, marcar entrevista, pedir dados e informações para reportagens.
Jornalistas constatam que fake news e informações desencontradas produzidas pelo Planalto passaram a ser uma constante. Como enfrentar isso no dia a dia da cobertura jornalística? A resposta vem de imediato: “Não fazendo um jornalismo pura e simplesmente relatorial , mas, sim, contextualizado, crítico, e com informações sempre muito bem checadas”.
Para os profissionais de imprensa, “essa é uma das maiores dificuldades. A todo momento temos que fazer matérias desmentindo dados e narrativas falsas, tanto do presidente como de sua equipe. Cabe à imprensa fazer o trabalho de sempre, insistir na apuração equilibrada, com responsabilidade, e confrontar narrativas distorcidas com fatos”.