Circula pela rede social o vídeo com a entrevista de dois especialistas em direito sobre a operação Lava Jato, a professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Eloisa Machado, e o professor de direito penal da USP, David Teixeira de Azevedo. Muito do que os entrevistados dizem nesta entrevista, o leitor do DCM já viu aqui, na série de reportagens sobre a operação.
Quando estas mesmas colocações são feitas no canal de televisão que foi decisivo na promoção de Sergio Moro a herói, o resultado foi o embaraço de quem fez as perguntas e a entrevista teve dupla importância: pelo que os entrevistados disseram e pela reação da apresentadora.
O roteiro estava dado, logo na abertura do programa, quando a experiente Mônica Waldvogel disse:
“A impunidade dos poderosos sempre foi um símbolo do atraso e da desigualdade no Brasil, daí o apoio popular à Lava Jato e a relevância deste momento, em que o combate à corrupção bate de frente com autoridades com foro privilegiado”.
Só que, desta vez, os entrevistados não se portaram como cordeiros a atender a linha editorial da Globo, e deixaram a apresentadora, em vários momentos, sem ter o que dizer. Foi visível o desconcerto.
Criminalista, David Azevedo discordou de Mônica logo na primeira resposta, a respeito da decisão do Senado que contrariou o Supremo Tribunal Federal, no caso das medidas cautelares de Aécio Neves.
— A Constituição sai perdendo, não? — perguntou Mônica.
— Eu acho que a Constituição saiu ganhando — contrapôs David de Azevedo. Eu acho que o equilíbrio entre os poderes saiu ganhando. Eu acho que a divisão de poderes sai prestigiada. O artigo 53 da Constituição Federal diz que um senador só pode ser preso em flagrante delito por crime inafiançável. É isso o que diz a Constituição. O crime é inafiançável? Não. Havia flagrante delito? Não. O Supremo poderia mandar prender ou dar qualquer outra medida restritiva? Não.
Mônica Waldvogel fez uma concessão:
— A Lava Jato está provocando inovações além da conta?
— Está e não só a Lava Jato — respondeu Eloisa. Quando a gente pensa nas maiores críticas da Operação, que é o uso abusivo das prisões preventivas, o episódio das delações, a gente tem que levar em consideração que o Judiciário brasileiro, em geral, prende muito e prende mal, condena mal.
A conversa segue para o que a Lava Jato teria de bom. Mônica antecipa:
— O balanço é formidável nesses três anos e meio.
Mônica pondera que as “inovações”da Lava Jato seriam necessárias para chegar aos poderosos.
O comum na imprensa é que, diante da senha da apresentadora, o entrevistado concorde. Quase sempre acontece isso. Mas não foi o que Azevedo fez:
— Eu acho que os poderes do Estado sofreram uma degradação. O que se quis e o que se quer com a Lava Jato e o que se está fazendo é uma espécie de degradação, uma espécie de socialização da miséria. Assim como os menos favorecidos, os da base da pirâmide, tinham uma justiça injusta, tinham prisões ilegais, sofriam as misérias de um processo penal, a visão da Lava Jato é: devemos dar igual tratamento àqueles que estão no vértice da pirâmide, ou seja, devemos também suprimir-lhes a garantia, devemos também decretar-lhes a prisão, de modo a que, se estabelecendo uma ética pragmática, os fins justifiquem os meios. Ou seja, o combate à corrupção justificará prisões processuais ilegais.
David Teixeira de Azevedo observa que as prisões da Lava Jato têm objetivo de forçar a delação, o que é ilegal. Mônica defendeu Moro:
— O Sergio Moro disse ao Gerson Camarotti, na entrevista aqui na Globonews, que a imensa maioria desses colaboradores estavam em liberdade.
Eloisa respondeu:
— Eu não tenho dúvida de que houve abuso nas prisões preventivas.
David de Azevedo acrescentou:
Muitas delações foram fechadas em razão de conversas — eu posso citar nomes — com o Ministério Público que ameaçava, com o envolvimento criminal, esposa, filhos, eventualmente sócios da empresa, mesmo sabendo que não havia envolvimento, isso ocorreu, e muito. Moro diz que as decisões dele foram confirmadas. Os acordos de delação, quando eram fechados, implicavam, ilegalmente, a desistência dos recursos. (…) Esta estatística que o Moro faz é uma estatística falsa. (…) Este é o cenário da Lava Jato.
Mônica recorreu a Eloisa:
— Você tem conhecimento de informações assim tão assustadoras, a ponto de a gente se alarmar com a lisura do processo?
— Nós tivemos episódios que foram gravíssimos. O vazamento dos áudios do Lula é um consenso.
Azevedo lembrou ainda que, quanto à legalidade das delações obtidas na Lava Jato, dois juristas portugueses, José Joaquim Gomes Canotilho e Nuno Brandão, deram um parecer para o governo português que consideram as colaborações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef ostensivamente ilegais e inconstitucionais.
“Ferem o ordenamento jurídico brasileiro e ferem o ordenamento jurídico português. Ferem a ordem pública portuguesa porque, nesses acordos, existe absoluta ilegalidade. Qual é a ilegalidade? O Ministério Público, no acordo, o magistrado homologando, criando condições que não estão previstas na lei, criando uma legislação própria para a delação, isto é ilegal”, afirmou.
Por fim, Mônica Waldvogel perguntou:
— A Lava Jato valeu a pena?
— Nada com violação ao devido processo vale a pena — respondeu Eloisa.
— Nem desmanchar um esquema pronto?
— Não, não. Como advogada de direitos humanos, que viu muita gente torturada, não, não vale nunca a pena violar o devido processo legal para se atingir um fim específico.
Na sua resposta, David lembrou Joelmir Betting, que era bom para explicar casos complicados com metáforas de fácil entendimento:
— Para acabar com os carrapatos, vamos matar as vacas. Lava Jato é alguma coisa parecida. Para acabar com o carrapato da corrupção, matemos as vacas, sacrifiquemos as garantias e os direitos fundamentais, utilizemos uma ética pragmática, uma época de resultado. Não hesitemos em prender, prender sem fundamento legal, desde que se alcance um resultados. Penas altíssimas, descompassadas com a culpa, para estimular outros a delatarem.
A Operação Mãos Limpas, na Itália, em que se inspirou Moro, produziu um resultado muito pequeno em relação à corrupção. Ou seja, segundo ele, o custo de suprimir direitos é muito alto pelo resultado que pode produzir.
Esta entrevista mostra que, diante dos abusos crescentes da Lava Jato, a velha mídia já não consegue controlar o que dizem os entrevistados. E talvez esteja encontrando dificuldade para encontrar quadros qualificados que referendem os pontos de vista da veículo em relação ao juiz Sergio Moro e seus parceiros na República de Curitiba.
O contra-ataque está em curso. A entrevista de Moro a Gerson Camarotti parece fazer parte de um esforço para recuperar o apoio de setores da sociedade brasileira que viam Moro como um super herói. A coordenador da Força Tarefa, procurador Deltan Dellagnol, já tinha dado entrevista para o Blog de Josias de Souza, da Folha.
São representantes do que eles poderiam chamar de imprensa amiga.
Moro e Dallagnol têm um compromisso agendado com outro veículo dócil para a próxima terça-feira , num evento reservado do jornal O Estado de S. Paulo. Eles vão participar do Fórum Estadão Mãos Limpas, juntamente com dois dos magistrados que coordenaram a Operação Mãos Limpas, na Itália – Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo.
São todos da imprensa amiga, que fez de Moro um ídolo na campanha para derrubar Dilma Rousseff. As autoridades de Curitiba sabem disso e se recusam, sistematicamente, a conceder entrevista para a imprensa independente.
Eu mesmo já solicitei entrevista com Sergio Moro e também com Deltan Dallagnol.
Dallagnol respondeu uma vez, por escrito, no caso da compra de dois apartamentos do Minha Casa, Minha Vida, em Ponta Grossa. Num encontro que tive com ele, pessoalmente, em uma churrascaria de Curitiba, eu pedi entrevista, ele me direcionou para a assessoria de imprensa. Fiz a solicitação e até agora nada.
Continuarei insistindo. Sempre propus perguntas com respostas sem cortes. É preciso esclarecer muitos pontos da Lava Jato.
A hora chegou.
A Abrahan Lincoln é atribuída a autoria de uma frase que define bem o que já está acontecendo:
“Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”.
Tudo indica que, para Moro, o jogo acabou.